Impedanciometria do esôfago na Pediatria
Natália Oliveira e Silva e Ulysses Fagundes Neto
Introdução
O Refluxo Gastroesofágico (RGE) é a condição clínica mais comum que acomete o esôfago na faixa etária pediátrica. Trata-se de uma queixa comum nos consultórios de pediatria, correspondendo a 25% das causas de visitas dos pacientes até os 6 meses de vida.
A variabilidade dos sintomas e do seu curso evolutivo, associada à falta de uma classificação que permita categorizar os pacientes de uma forma padronizada e aceita universalmente, gera muita confusão em relação à abordagem terapêutica do RGE em crianças.
Segundo o guia de conduta das Sociedades Norte-americana e Europeia (NASPGHAN/ESPGHAN) proposto em 2009, o RGE consiste na passagem do conteúdo gástrico para o esôfago, com ou sem a presença de regurgitação e vômito, sendo um processo fisiológico, que ocorre várias vezes ao dia nas diferentes faixas etárias.
Os episódios de RGE fisiológico em indivíduos saudáveis são, na maioria das vezes, de curta duração (<3 minutos), ocorrem no período pós-prandial e ocasionam pouco ou nenhum sintoma;
Por outro lado, a Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE) associa-se com a presença de sintomas ou complicações advindas do retorno do conteúdo gástrico para o esôfago. O diagnóstico da DRGE na faixa etária pediátrica é de difícil comprovação devido a inexistência de exames diagnósticos considerados padrão-ouro, além de não haver nenhuma combinação de sintomas que sejam específicos desta afecção ou de suas complicações.
Diagnóstico
Em geral, o diagnóstico baseia-se na história clínica e no exame físico do paciente, e, portanto, devem ser considerados, em princípio, como padrão-ouro. Entretanto, na maioria das vezes é necessário quantificar e caracterizar a DRGE de forma mais objetiva. Para se obter informações diagnósticas mais fidedignas deve-se lançar mão de alguns testes, os quais podem ser divididos em 2 categorias, a saber:
A) Testes que mensuram os episódios de refluxo: pHmetria, impedancio-pHmetria, radiologia do esôfago-estômago-duodeno (EED) e cintilografia gastroesofágica.
B) Exame de avaliação de possíveis complicações: endoscopia digestiva alta.
pHMETRIA
A pHmetria é um exame útil para diferenciar o RGE fisiológico da DRGE, bem como para correlacionar os episódios de refluxo ácido com sintomas relatados, especialmente os extra-digestivos, selecionando, dessa forma, os pacientes que irão se beneficiar com o tratamento para a DRGE. Está bem estabelecido que a pHmetria representa uma medida quantitativa confiável da exposição ácida no esôfago, com valores de referência universalmente bem definidos. Vale ressaltar que a pHmetria não é sensível aos episódios de refluxo não ácidos ou fracamente ácidos. Em lactentes, com dieta exclusiva ou predominantemente láctea, o RGE pós-prandial pode não ser detectado, devido a neutralização do refluxo ácido provocado pelo leite, que é uma substância alcalina, em especial o leite humano.
Atualmente, este teste está sendo mais utilizado em conjunto com a impedanciometria, sob a denominação de impedâncio-pHmetria (IMM-pH).
IMPEDANCIOMETRIA
A impedanciometria é um procedimento ambulatorial, utilizado para detectar todos os episódios de refluxo, identificando o seu conteúdo (fluidos, sólidos ou gasoso) no esôfago, em qualquer quantidade, independentemente do sentido, de qualquer localização e do pH, posto que este teste mensura as alterações da resistência elétrica.
A impedância (resistência elétrica) é determinada pela quantidade e fluxo de íons através do tecido. Existe um certo grau de impedância basal através da parede esofágica.
A condutividade elétrica do ar é quase zero, enquanto que a condutividade de um bolus alimentar, como por exemplo, leite, saliva ou conteúdo gástrico, é relativamente elevada quando comparada com a baixa condutividade da parede muscular. Assim sendo, quando o esôfago está vazio, a impedância é alta, enquanto que a passagem do bolo alimentar provoca queda da impedância, posto que a impedância diminui durante a passagem de um bolus com alta condutividade, tais como a saliva, alimentos ou secreções gastrointestinais. A impedância aumenta durante as fases de baixa condutividade, como por exemplo durante a passagem do ar ou durante as contrações musculares da parede do órgão.
A passagem do bolus é caracteristicamente dividida em cinco fases, como se segue (Figura 1):
- Fase 1 – estado de repouso: relaxamento muscular do esôfago;
- Fase 2 – aumento da impedância causada pela passagem do ar na frente do bolus;
- Fase 3 – diminuição da impedância causada pela passagem de um bolus com alta condutividade;
- Fase 4 – constricção da parede esofágica que acarreta aumento da impedância após a passagem do bolus;
- Fase 5 –relaxamento da parede esofágica: a impedância retorna ao estado de repouso.
O princípio básico deste teste é a gravação das alterações da impedância elétrica do lúmen, ocasionadas pela passagem de um bolo alimentar, independentemente de suas características físicas ou químicas, por meio da utilização de um cateter transnasal. O teste identifica o refluxo ácido (pH<4), pouco ácido (pH 4-7) ou não ácido (pH>7), movimento do alimento, de gás ou misto (gás e líquido). A sensibilidade diagnóstica da impedância é equivalente à da pHmetria em pacientes não tratados, porém é superior naqueles pacientes tratados com medicação antiácida. A vantagem principal sobre a pHmetria é detectar também os refluxos não-ácidos (Tabela 1).
A impedanciometria encontra-se disponível para uso pediátrico desde 2002, e é um teste facilmente realizável em qualquer faixa etária, desde prematuros a adolescentes, e a princípio, apresenta as mesmas indicações da pHmetria, ou seja:
- A) Mensurar o refluxo em pacientes que não respondem ao tratamento anti-refluxo;
- B) Quantificar o refluxo em pacientes com predomínio de sintomas extra-esofágicos;
- C) Avaliação de sintomas descontínuos, tais como tosse e rouquidão, que podem estar associados a refluxo não ácido ou fracamente ácido;
- D) Pode ser realizado durante tratamento medicamentoso, e, também, durante infusão de dieta enteral (contínua ou em bolus), para avaliação do refluxo durante as refeições e nos períodos pós-prandiais.
DISPOSITIVOS DE GRAVAÇÃO E SOFTWARE
Diversos aparelhos e softwares estão disponíveis para uso na faixa etária pediátrica. Alguns equipamentos oferecem muitos outros parâmetros, como a saturação de oxigênio, frequência cardíaca e respiratória, e até manometria esofágica de alta resolução (Tabela 2).
PREPARO
Devem ser selecionadas sondas apropriadas para a idade do paciente, as quais possuem pelo menos 6 anéis de impedância e 1 canal distal de pH, sendo a maioria deles de antimônio. Em virtude desta combinação o pH e a impedância são avaliadas em pelo menos 6 locais, em diferentes níveis do esôfago. A sonda possui diâmetro de 2,13 mm, enquanto que o comprimento da mesma varia de acordo com idade/estatura do paciente a ser avaliado, a saber:
- Infantil (altura < 75 cm)
- Pediátrico (75-150cm)
- Adulto (>150)
A distância entre os anéis de impedância e o sensor de pH difere de acordo com o cateter (altura do paciente e marca do cateter) (Figura 2).
As sondas podem ser de uso único ou múltiplo. Não existe uma recomendação para escolha de cada uma delas. As sondas podem ter um eletrodo de referência interno, localizado na extremidade do cateter, 3-5 cm distal do sensor de pH, atravessando o esfíncter esofágico inferior ou externo, fixado ao paciente. O eletrodo do pH deve ser calibrado de acordo com as instruções do fabricante em 2 soluções de pH diferentes.
A sonda de IMM-pH é inserida por via intranasal, de preferência sem sedação, embora o uso de anestésico tópico spray possa ser benéfico em algumas crianças. O uso de gel pode facilitar a passagem da sonda, mas o gel não deve estar em contato com o eletrodo de antimônio porque pode diminuir sua acurácia.
O eletrodo de pH deve ser posicionado 2 vértebras acima do diafragma, no nível da coluna lombar. A fórmula de Strobel (0,252 x altura em cm + 5) pode ser utilizada para estimar o posicionamento apropriado da ponta distal do cateter – observar que foi desenvolvida para lactentes e se torna imprecisa à medida que o paciente cresce. A posição deve ser confirmada por Raio X.
A IMM-pH é um exame de custo elevado. O equipamento custa em torno de 15 mil euros e o valor aproximado de cada sonda é de 150 euros. Além disso, cada profissional leva em média 1 hora para interpretar o exame, o que resulta em um custo adicional.
INSTRUÇÕES
Assim como na pHmetria, na impedanciometria deve ser realizada monitoração durante 24 horas, já que os episódios de refluxo podem variar com a refeição, período pós-prandial, posição ortostática e decúbito, períodos de sono e vigília;
Devem ser realizadas anotações com os sintomas apresentados pelo paciente, incluindo a hora apresentada no visor do aparelho para posteriormente tornar possível a correlação sintomática. Devem ser incluídos, no mínimo, os seguintes dados: horário das refeições (início e fim), posição (prona e supina), sintomas, além de outros eventos relevantes, como por exemplo, desconexão do cateter. Recomenda-se evitar alimentos ácidos e bebidas gaseificadas, porque tornam a interpretação mais complexa. O eletrodo também sofre influência da temperatura, portanto, alimentos extremamente quentes ou frios devem ser evitados.
ANÁLISE
Ao término do exame, todos os dados do diário de eventos devem ser transferidos para o computador. Apesar de que até o presente momento nenhuma análise automatizada esteja totalmente validada para crianças, a maioria dos usuários da IMM-pH inicia a análise do traçado pela análise automatizada que manualmente visualiza o estudo, para adicionar e/ou excluir os eventos e confirmar ou não a ocorrência do refluxo. Valores de normalidade para crianças não existem já que não é eticamente possível realizar um estudo com crianças saudáveis assintomáticas.
O objetivo do estudo foi validar o uso da IMM-pHmetria. Foram selecionados 700 pacientes de Janeiro/2004 a Junho/2008, de 0 a 16 anos, com indicação do procedimento, a saber: sintomas do trato gastrointestinal, pulmonares e neurológicos.
Os seguintes achados foram definidos como anormais:
- pHmetria: Índice de Refluxo (IR – % de tempo com pH <4) > ou = 5% em >1 ano e > ou = 10 em menores de 1 ano.
- Impedanciometria: Índice de sintoma (número de sintomas associados ao refluxo/número de todos sintomas) maior ou igual 50% ou maior número de episódios de refluxo – arbitrariamente definido como maior do que 70 episódios em 24 horas em pacientes com 1 ano ou mais, e maior do que 100 naqueles com menos de 1 ano.
Os autores concluíram que 45% dos pacientes com DRGE não teriam sido reconhecidos caso esse diagnóstico houvesse sido realizado apenas através da pHmetria de 24 h. Os achados do estudo confirmam que a MII-pH é superior à pHmetria isoladamente na avaliação do RGE.
Os objetivos do estudo foram determinar a variabilidade intra e interobservador na interpretação da IMM-pHmetria entre 10 especialistas de 7 diferentes grupos no mundo na análise do exame, e, além disso, determinar a acurácia da análise automatizada que foi comparada levando-se em consideração a avaliação dos observadores. Foi ainda avaliada a variabilidade intraobservador entre 3 investigadores.
Foi encontrada sensibilidade de 94% para a análise automatizada e especificidade de 74%. Foi observado que a concordância entre especialistas na análise da IMM-pHmetria é moderada, pois apenas 42% dos episódios de RGE foram detectados pela maioria dos observadores.
Considerando esse resultado fraco, a análise automática (AA) parece ser mais favorável em comparação com a análise manual devido à sua baixa reprodutibilidade. No entanto, a baixa especificidade sugere a necessidade de refinamento da AA antes de que o uso generalizado do teste possa ser defendido.
CONCEITOS SOBRE ALGUNS PARÂMETROS
Refluxo líquido é definido como uma queda na impedância de pelo menos 50% da linha de base em pelo menos 3 anéis consecutivos. O final de um episódio de refluxo é definido como o momento em que o valor da impedância retornou a pelo menos 50% do valor inicial (linha de base). Refluxo gasoso é caracterizado pelo aumento na impedância >3000 Ohm em quaisquer de dois locais consecutivos de impedância com um local possuindo um valor absoluto >7000 Ohm. Refluxo misto é a combinação de líquido e gás.
Quando a queda da impedância ocorre primeiro no nível superior, este dado corresponde a um episódio de deglutição (Tabela 3).
Todos os dados do diário devem ser inseridos antes da análise automatizada. Pode ser observado um atraso em relação ao horário do sintoma apresentado pelo episódio de refluxo. Em geral, um intervalo de 2 minutos (antes e depois) é aceito, embora esse valor seja definido por consenso, sem ser baseado em evidência. Devem ser relatados o número de sintomas associados ao refluxo e os não associados, além do número de refluxos com e sem sintomas. Com estes dados disponíveis diferentes análises podem ser realizadas.
PARÂMETROS
O Índice de Sintoma (IS-%) corresponde ao percentual de sintomas associados ao refluxo dividido pelo total de sintomas. É arbitrariamente definido em adultos como alto ou positivo quando acima de 50%.
O Índice de Sensibilidade dos Sintomas (SSI – %) representa a porcentagem de eventos sintomáticos associados ao refluxo dividido pelo número total de episódios de refluxo. Valor maior que 10% é geralmente aceito como clinicamente significativo.
Na Probabilidade de Associação de Sintomas (SAP – %), o tempo total mensurado é subdividido em 2 intervalos de 2 minutos e uma tabela é estabelecida: número de intervalos com RGE, com e sem sintomas, número de intervalos sem RGE, com ou sem sintomas. O teste de Fisher é utilizado para cálculo.
Valor positivo acima de 95% é interpretado como tendo boa associação temporal entre RGE e os sintomas apresentados, e é a mais forte evidência da existência de refluxo pois é a menos influenciada pelo número absoluto de RGE e dos sintomas.
Em geral, a demonstração de uma associação temporal entre RGE e sintomas relevantes é estabelecida com aqueles de curta duração (tosse, apneia, queda da saturação do oxigênio), enquanto que para os sintomas de longa duração (laringite, bronquite) a interpretação global do exame é mais relevante. Até o momento, apenas estudos prospectivos duplo cego placebo controlado extremamente limitados foram conduzidos em crianças com sintomas extra-esofágicos possivelmente associados ao REG.
COMPLICAÇÕES
Potenciais complicações são raras, mas devem ser advertidas aos pais/responsáveis – falha técnica, sonda mal posicionada (altura, brônquio) e trauma na mucosa (sangramento, laceração). A frequência e causa de complicações são as mesmas da pHmetria convencional.
FUTURO
Uma interessante avaliação poderia ser a comparação entre MMI-pH e a cintilografia – mensurar o RGE durante a refeição e no período pós-prandial de 1 hora. A literatura evidencia correlação extremamente fraca entre o RGE caracterizado pela pHmetria em comparação com a cintilografia.
A combinação entre a IMP com fluoroscopia e a manometria de alta resolução pode ser útil no estudo da função faríngea, porque o movimento do bolus é visualizado enquanto são registradas a pressão e o movimento de líquido e ar.