Doença Celíaca: Um artigo sobre a posição da ESPGHAN no manejo e evolução clínica das crianças e adolescentes (Parte 2)
Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
O artigo intitulado “ESPGHAN position paper on management and follow-up of children and adolescents with celiac disease”, que foi publicado no Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition, em setembro de 2022, foi realizado por um grupo de 34 experts pertencentes à ESPGHAN Special Interest Group on Celiac Disease encabeçado por ML Mearin do Willen Alexander Children´s Hospital, Leiden University Medical Centre, Leiden, the Netherlands, teve por objetivo reunir as evidências atuais e oferecer recomendações consensuais a respeito do manejo e da evolução clínica da Doença Celíaca (DC). Este grupo formulou 10 perguntas consideradas de essencial importância para os cuidados dos pacientes portadores da DC a longo prazo. Foi realizada uma pesquisa na literatura médica de janeiro de 2010 a março de 2020, na PubMed e na Medline. As publicações mais relevantes foram identificadas e os trabalhos potencialmente elegíveis foram avaliados. As afirmações e as recomendações foram detalhadas e discutidas pelos coautores. As recomendações foram, em seguida, submetidas a votação. Foi considerada concordância geral quando o nível de aceitação atingiu pelo menos 85% dos autores.
Considerando a longa extensão deste trabalho de 74 páginas decidi, neste segundo resumo, selecionar a pergunta de número 3, pois foi aquela que me pareceu de maior interesse geral para os profissionais da Saúde.
3 – Qual deve ser a frequência do seguimento dos pacientes e o que deve ser avaliado?
A literatura atual não fornece evidências sólidas a respeito da frequência ótima de seguimento dos pacientes. A despeito da falta de estudos de relevante qualidade, recomenda-se que a primeira visita de seguimento deva ser agendada entre 3 e 6 meses após o diagnóstico da DC. Entretanto, caso haja fácil acesso ao serviço médico, na medida da necessidade, o agendamento mais precoce pode também ser realizado, principalmente no que diz respeito a fornecer à família maiores conhecimentos sobre a DC, preocupações e dificuldades com a implantação da dieta isenta de glúten, e, mais importante ainda, caso os sintomas persistam ou se agravem, a despeito da suposta aderência restrita à dieta isenta de glúten, ou se as manifestações clínicas (por exemplo desnutrição) ou anormalidades laboratoriais, no momento do diagnóstico, requeiram seguimento precoce. Visitas de seguimento posteriores podem ser agendadas com intervalo de 6 a 12 meses.
Pacientes pediátricos que sem mantém em restrita dieta isenta de glúten, usualmente demonstram rápida resolução dos sintomas gastrointestinais relacionados a DC, tais como: flatulência, diarreia, dor abdominal, perda de peso, assim como em relação às manifestações extra intestinais, tais como, anemia, retardo da puberdade, estomatite. Seguimentos clínicos inconsistentes ou mesmo ausentes estão associados com pobre aderência dietética.
A normalização da sorologia é amplamente utilizada durante o seguimento, como um sinal indireto da recuperação da mucosa intestinal, sendo considerada como valor preditivo altamente positivo e/ou negativo. A redução significativa dos níveis do anticorpo anti-transglutaminase (ATG-IgA) é alcançada após cerca de 3 meses do início da dieta isenta de glúten, quando avaliada utilizando-se o mesmo ensaio laboratorial. Alguns estudos comprovaram que os níveis do ATG-IgA permaneceram 1x acima do nível superior da normalidade em 83,8%, e, acima de 10x em 26,6% das crianças avaliadas após 3 meses do início da dieta isenta de glúten. A total normalização de ambos os níveis de ATG-IgA e a recuperação da lesão histopatológica podem levar mais de 2 anos, particularmente nos casos de lesões graves do intestino delgado, com elevados níveis de ATG-IgA no momento do diagnóstico.
A saúde óssea pode estar comprometida nos pacientes com DC, e, nas crianças a doença óssea na maioria das vezes é assintomática e está associada com uma diminuição do ritmo de crescimento e da qualidade óssea. Diferentemente do que é observado em adultos, a DC em crianças não parece estar associada com aumento do risco de fraturas. Uma redução da densidade mineral óssea pode estar presente no momento do diagnóstico da DC em crianças e adolescentes. Ainda que um seguimento de longa duração possa ser necessário para assegurar a recuperação apropriada da densidade mineral óssea na maioria dos casos, um ano após o uso da dieta isenta de glúten restrita é suficiente para a restauração da massa óssea. Portanto, testes rotineiros da densidade mineral óssea não são necessários. Quando houver perda óssea identificada, testes da densidade óssea seriados devem ser realizados a cada 1 ou 2 anos, até sua normalização.
Nos casos pouco frequentes de deficiência de vitamina D, no momento do diagnóstico da DC, sua correção deve ser proposta para otimizar a saúde óssea. O fígado é um local comum de manifestações extra intestinais da DC, usualmente apresentando níveis elevados das aminotransferases. A função hepática de ser monitorada durante o seguimento, caso estas enzimas estejam alteradas ao diagnóstico. Considerando-se que as crianças com DC podem apresentar deficiências de micronutrientes, investigações dos níveis de ferro, folato e vitamina B12 são relevantes no momento do diagnóstico, e, caso mostrem-se anormais, estes micronutrientes devem ser monitorados até a normalização, seja apenas utilizando-se a dieta isenta de glúten ou a respectiva suplementação nos casos de anemia e da diminuição dos depósitos de ferro.
O risco de doença autoimune da tireoide encontra-se aumentado nos pacientes com DC, porém, com base nos conhecimentos atuais não há evidências para o aconselhamento de monitorar os níveis de tiroxina e TSH durante o processo de acompanhamento dos pacientes.
Referências Bibliográficas
- Mearin ML et al – JPGN 2022; 75:369-386
- Snyder J et al – Pediatrics 2016; 138:e20153147
- Deora V et al – JPGN 2017; 65:185-9
- Ludvigsson JF et al – Gut 2017; 67:1410-24
Meus Comentários
A análise detalhada deste excelente artigo deixa explicitamente estabelecida a fundamental importância de se estabelecer um seguimento clínico rigoroso para garantir o controle da DC visto que até o presente momento não há, no horizonte de médio prazo, a possibilidade de se propor a cura definitiva desta enfermidade. Todos sabemos das enormes dificuldades que se apresentam para se conseguir uma adesão restrita à dieta isenta de glúten nos pacientes pediátricos de forma permanente, posto que, inúmeros fatores, sejam eles biopsicossociais ou mesmo de outras índoles, atuam de forma ativa para contrariar o objetivo final. Por esta razão, é necessário que os pacientes e seus familiares recebam uma atenção constante por parte dos profissionais da saúde envolvidos no tratamento dos pacientes, acompanhando o ritmo de crescimento e/ou outras possíveis manifestações clínicas suspeitas de transgressões alimentares, as quais podem ser voluntárias e/ou involuntárias. Neste sentido, o controle laboratorial periódico por meio da determinação do anticorpo anti-transglutaminase se constitui em um excelente marcador do sucesso do tratamento.