Diagnóstico e Manejo da Doença Celíaca (DC): atualização das guias de conduta do American College of Gastroenterology
Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
A renomada revista American Journal of Gasroenterology publicou em janeiro de 2023 o artigo intitulado “American College of Gastroenterology Guidelines Update: Diagnosis and Management of Celiac Disease” dos seguintes autores Alberto Rubio-Tapa e cols., que a seguir passo a resumir, em seus aspectos mais importantes.
Esta guia de conduta representa uma atualização daquela publicada em 2013. A DC afeta aproximadamente 1% da população dos Estados Unidos. A DC é definida como uma resposta autoimune permanente ao glúten presente no trigo, centeio e cevada. A DC possui um amplo espectro de manifestações clínicas que se assemelha mais a um transtorno multisistêmico do que a uma enfermidade intestinal isolada. A DC caracteriza-se por causar uma lesão no intestino delgado e pela presença de anticorpos específicos. A detecção dos anticorpos específicos para a DC no sangue é de grande auxílio para o rastreamento inicial dos pacientes com suspeita de DC. A biópsia intestinal é requerida para a confirmação diagnóstica na maioria dos casos. O tratamento da DC requer adesão estrita a uma dieta isenta de glúten ao longo de toda a vida, bem como ao seu seguimento clínico. A maioria dos pacientes apresenta uma excelente resposta à dieta isenta de glúten. A ausência de resposta à dieta isenta de glúten é definida pela persistência dos sintomas ou a recidiva dos sintomas a despeito da adesão à dieta isenta de glúten. A DC refratária é uma causa rara de ausência de resposta à dieta isenta de glúten geralmente associada a um prognóstico desfavorável.
Tabela 1: Perguntas e recomendações
1) Deve ser utilizada uma combinação de testes sorológicos não invasivos versus a biópsia duodenal para confirmar o diagnostico em DC em crianças e adultos?
A – Nós recomendamos a Endoscopia Digestiva Alta (EDA) com múltiplas biópsias para confirmar o diagnóstico tanto em crianças como em adultos com a suspeita de DC.
B – Nós sugerimos uma combinação de títulos elevados do anticorpo anti-transglutaminase IgA (>10x o limite superior da normalidade) associado ao anticorpo anti-endomisio positivo em uma segunda amostra de sangue, como testes confiáveis para o diagnóstico de DC em crianças. Em pacientes adultos sintomáticos que não desejam se submeter a EDA, os mesmos critérios podem ser considerados como diagnóstico de DC.
2) Deve ser utilizada a recuperação da mucosa duodenal versus a remissão clínica e sorológica para demonstrar a longo prazo (5 anos ou mais) como sucesso da terapia isenta de glúten, tomando-se como base a ausência de risco para mortalidade, câncer e osteoporose em adultos com DC?
Nós sugerimos estabelecer como objetivo de sucesso a recuperação da mucosa intestinal como um ponto ideal a ser alcançado pela terapia isenta de glúten. Nós advogamos que seja realizada uma discussão individualizada com o paciente a respeito dos objetivos de sucesso da dieta isenta de glúten, além das remissões clínicas e sorológicas.
3) Devem ser utilizadas ferramentas de detecção de glúten versus os tradicionais padrões correntes no cuidado da monitoração da adesão à dieta isenta de glúten e/ou dar a liberdade para uma decisão própria do paciente?
Nós sugerimos a não utilização de ferramentas rotineiras para a detecção do glúten nos alimentos entre os pacientes com DC.
4) Nos pacientes com DC quais são os efeitos dos probióticos adicionados à dieta isenta de glúten sobre as taxas de remissão clínica e a recuperação da mucosa, em comparação com apenas a utilização da dieta isenta de glúten?
Não há evidências suficientes para recomendar a favor ou contra o uso de probióticos para o tratamento da DC.
5) Deve-se utilizar a estratégia de busca ativa de casos versus o rastreamento populacional para aumentar a detecção da DC na população geral?
A – Nós recomendamos a estratégia da busca ativa de casos para aumentar a detecção da DC na prática clínica.
B – Nós somos contra o rastreamento populacional para a detecção da DC na comunidade.
6) É a combinação dos anticorpos anti-transglutaminase e gliadina deamidada o meio mais acurado para o diagnóstico da DC em crianças com idade inferior a 2 anos, comparado com a determinação do anticorpo anti-transglutaminase separadamente?
A – Nós recomendamos a detecção do anticorpo anti-transglutaminase IgA como o teste isolado preferencial para a detecção da DC nas crianças menores de 2 anos que não sejam deficientes de IgA.
B – Nós recomendamos testar para DC crianças com deficiência de IgA utilizando os anticorpos IgG para ambos, gliadina deamidada e transglutaminase.
Tabela 3- Conceitos Fundamentais
Recomendações 1A e 1B
São necessárias múltiplas biópsias do duodeno (1 ou 2 do bulbo e 4 da porção distal) para o diagnóstico da DC.
A Endoscopia Digestiva Alta e as biópsias duodenais podem também ser úteis para o diagnóstico diferencial de outros transtornos malabsortivos ou enteropatias.
Linfocitose duodenal (>25 linfócitos para cada 100 enterócitos) na ausência de atrofia vilositária não é específica para o diagnóstico da DC, e, portanto, outras causas devem ser consideradas.
Recomendação 2
A EDA com biópsia intestinal é um coadjuvante no monitoramento para os casos em que há ausência na resposta clínica ou recidiva dos sintomas a despeito do cumprimento da dieta isenta de glúten.
Biópsia de seguimento deve ser levada em consideração para a avaliação da recuperação da mucosa em adultos com ausência de sintomas, após 2 anos do início da dieta isenta de glúten, devendo ocorrer em comum acordo médico-paciente.
Recomendação 3
O cuidado padrão para avaliar a adesão à dieta isenta de glúten deve-se dar por meio de entrevista pessoal do paciente com o profissional de saúde.
As tecnologias qualitativas de detecção de glúten nos alimentos não conseguem diferenciar clinicamente entre uma exposição significativa versus uma exposição trivial ao glúten.
Há pouca evidência para sugerir que o uso de tecnologia para detectar glúten aumenta a adesão à dieta isenta de glúten ou a qualidade de vida.
São necessários mais estudos para avaliar a utilidade das tecnologias para detectar glúten no sentido de aumentar a adesão à dieta isenta de glúten e mesmo os desfechos clínicos dos pacientes.
Recomendação 4
Disbiose é um aspecto clínico da DC, porém seu verdadeiro papel na patogênese da enfermidade e da sintomatologia é incerto.
A despeito do uso indiscriminado dos probióticos, não está estabelecido seu benefício no manejo da DC.
Recomendação 5
O consumo de aveia parece ser seguro para a maioria dos indivíduos com DC, porém pode ser imunogênica para alguns grupos de pacientes.
A heterogeneidade na tolerância da aveia pode estar relacionada com a origem da safra e a quantidade de aveia consumida.
Os intervalos de tempo para o monitoramento dos sintomas e a realização da sorologia após a ingestão de aveia isenta de glúten ainda não são conhecidos.
Recomendação 6
A vacinação contra a infecção por pneumococo é segura e eficaz.
A vacinação é amplamente recomendada para todos os adultos acima dos 65 anos de idade e para os fumantes de 19-64 anos de idade ou adultos que apresentam determinadas morbidades.
Recomendação 7
Pacientes que apresentam sintomas, sinais ou evidências laboratoriais sugestivas de má absorção intestinal, tais como, diarreia crônica com perda de peso, esteatorreia, dor abdominal e flatulência, devem ser testadas para DC.
Pacientes que foram confirmados como portadores de DC e que tenham membros familiares de primeiro grau, estes devem ser testados caso apresentem possíveis sinais, sintomas ou evidências laboratoriais de DC.
Deve ser considerada a testagem de parentes de primeiro grau cujo membro da família teve o diagnóstico de DC confirmado.
Recomendação 8
Os anticorpos anti-transglutaminase IgA e antiendomíseo IgA são descritos como de menor acurácia em crianças menores de 2 anos de idade.
As guias de conduta atuais recomendam que as crianças menores de 2 anos de idade devem ser testadas para DC utilizando-se ambos os testes, anti-transglutaminase IgA e antigliadina deamidada IgG.
Tabela 4 – Condições clínicas que devem ser levadas em consideração e que justificam testar para DC
São frequentes na DC
Má absorção sintomática
Diarreia associada a perda de peso
Diarreia crônica com ou sem dor abdominal
Deficiência crônica de Ferro e anemia inexplicada
Doença óssea metabólica e osteoporose prematura
Flatulência pós-prandial e produção excessiva de gases
Perda de peso inexplicada
Aumento das enzimas hepáticas
Achado acidental de atrofia vilositária
Dermatite herpetiforme
Neuropatia periférica
Aftas orais ulcerosas
Parada no ritmo de crescimento
Descoramento dos dentes ou perda do esmalte dentário
Enfermidade da tireoide
Síndrome do intestino irritável
Síndromes de Turner e Down
Pancreatite recorrente de origem inexplicada
São menos frequentes na DC mas tratáveis
Hemosiderose pulmonar
Infertilidade masculina e feminina
Dispepsia
Amenorreia
Fadiga crônica
Epilepsia ou ataxia
Constipação
Dor abdominal recorrente
Artralgia crônica
Cefaleia frequente e enxaqueca
Figura 1- Algoritmo para o teste diagnóstico da DC: 1) Critérios para não realizar biópsia duodenal requer elevados níveis do anticorpo anti-transglutaminase (>10 vezes o limite superior da normalidade) associado a um teste anticorpo antiendomíseo positivo em uma segunda amostra de sangue, desde que haja consentimento da família em não realizar a biópsia duodenal; 2) Amostras duodenais recomendadas: 1 ou 2 biópsias do bulbo e 4 biópsias do duodeno distal.
Siglas: CD, doença celíaca; CIVD, deficiência imunológica comum variável; DGP, anticorpo antigliadina deamidada; EMA, anticorpo antiendomiseo; HLA, antígeno leucocitário humano; IgA, imunoglobulina A; IgG, imunoglobulina G; TTGA, anticorpo antitransglutaminase
Figura 2- Abordagem para monitorar a DC. 1) TTG e DGP podem ser empregadas para monitorar a DC considerando-se a disponibilidade do teste antes do início da dieta isenta de glúten; 2) Outros testes podem ser incluídos, tais como, hemograma completo, TGO, TGP, vitaminas A,D,E,B12, cobre, zinco, ácido fólico, ferritina e ferro; 3) Testes sanguíneos durante o seguimento devem ser individualizados para verificação se houve correção das possíveis anormalidades; 4) O papel da biópsia no monitoramento da DC é também averiguar a recuperação da mucosa.
Figura 3- Abordagem para investigar os casos de DC não responsiva (NRCD) e DC refratária (RCD): 1) NRCD deve ser definida pela persistência dos sintomas, sinais clínicos ou anormalidades a despeito do cumprimento da dieta isenta de glúten durante o período de 6 a 12 meses; 2) Causas de atrofia vilositária não celíaca; 3) Condições clínicas com manifestações similares a DC; 4) Sorologia positiva para DC a despeito de 12 meses de tratamento sugere transgressão dietética; 5) RCD deve ser definida pela persistência dos sinais e sintomas associada a atrofia vilositária após 12 meses de tratamento, na ausências de outros transtornos incluindo Linfoma.
Referências Bibliográficas
- Alberto Rubio-Tapia e cols. – Am J Gastroenterol 2023; 118: 59- 76
- Lebwohl B e cols. – Gastroenterology 2021; 160:63-75
- Husby S e cols. – JPGN 2020; 70:141-156
- Hoerter NA e cols. – Dig Dis Sci 2017; 62:1272-6