Alergia Alimentar mediada por IgE
Alergia Alimentar mediada por IgE: mecanismos que definem sua evolução transitória versus persistente
Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Introdução
A alergia alimentar (AA) tem sua origem a partir de momentos precoces da vida e afeta entre 6% a 8% da população pediátrica. Algumas AAs são comumente transitórias, enquanto outras, eventualmente persistem até a vida adulta. A alergia ao leite, à soja e ao ovo, as quais são as mais comuns na infância, são três causas de alergia que geralmente são superadas ao longo da infância. Um estudo multicêntrico motivacional envolvendo lactentes de 3 a 15 meses de idade, portadores de alergia ao leite ou ao ovo e/ou eczema, demonstrou que aproximadamente 50% deles superaram a alergia ao ovo com uma mediana de 6 anos de idade. A mesma cohort demonstrou que 52,6% das crianças com alergia ao leite, superaram a mesma com uma mediana de idade de 63 meses. Um estudo populacional realizado na Austrália demonstrou que 47% dos lactentes com alergia ao ovo, esta desapareceu aos 2 anos de idade e que sua prevalência diminuiu de 9,5% com 1 ano de idade, para 1,2% aos 4 anos de vida. Um estudo europeu, envolvendo 12mil crianças de diferentes países daquele continente, demonstrou que 17% das crianças portadoras de alergia ao leite, mediada por IgE, superaram o problema aos 2 anos de vida (Figura 1).
Por outro lado, diferentemente das alergias ao leite e ao ovo, as alergias ao amendoim e às nozes são usualmente persistentes. Um seguimento de 4 anos de duração em um grupo de crianças com alergia ao amendoim, mostrou que 22% delas, nas quais o diagnóstico foi estabelecido com 1 ano de vida, ela desapareceu ao redor dos 4 anos de vida. A ocorrência de resolução espontânea demonstra que a tolerância pode ser alcançada na AA, o que nos leva à necessidade de conhecer as bases imunológicas desta resolução para que possamos desenvolver um tratamento mais racional para combater a AA persistente.
Fatores preditivos da resolução da AA
Imunoglobulinas específicas aos alimentos
Em um detalhado estudo da história natural do nível de IgE específico para o leite, a resposta ao prick-test para o leite, e a intensidade da dermatite atópica no início da enfermidade, mostraram-se os três fatores preditivos mais importantes para a resolução da alergia ao leite (Figura 2).
Igualmente, níveis IgE específicos para o ovo e a intensidade da dermatite atópica no momento do diagnóstico, foram os dois fatores preditivos mais importantes para a resolução da alergia ao ovo. O uso de níveis de IgE para categorizar os indivíduos introduz uma propensão para se encontrar um papel da IgE nos desfechos clínicos.
Fatores preditivos de persistência da alergia ao amendoim (definida como persistente aos 4 anos de idade), em um estudo australiano, incluíram a resposta ao prick-test e a dosagem da IgE específica para amendoim com um ano de idade. Eczema no primeiro ano de vida não foi um fator preditivo para a persistência da alergia ao amendoim (Figura 3).
Níveis de IgG4 a alergênicos específicos não se mostraram fatores preditivos da resolução natural da alergia, porém, níveis de IgG4 encontravam-se elevados à exposição do alergeno.
Além da magnitude da resposta IgE específica, a especificidade do epitopo da resposta IgE parece ser um importante fator determinante da transitoriedade versus persistência. Estudos que examinaram a persistência da alergia ao leite e ao ovo, salientaram a importância da ligação aos epitopos lineares como o fator preditivo da persistência da alergia. A magnitude da IgE especifica à clara do ovo é um fator preditivo para a persistência da alergia ao ovo. A mensuração da ligação da IgE aos componentes do ovo (ovo mucoide, ovo albumina e ovo transferrina, da clara do ovo, e a alfalivetina, da gema) não aumentaram o fator preditivo de persistência à alergia ao ovo, em comparação com a IgE específica à clara do ovo, mas quando há uma ligação com todos os quatro alergenos, houve um aumento de quatro vezes para o risco da persistência da alergia ao ovo. Desta forma, a diversidade ou intensidade da resposta da IgE parecem contribuir para a persistência da alergia (Figura 4).
As respostas das células T específicas aos alimentos
Há uma falta de informação em relação aos fenótipos das células T associados com a história natural da AA. Respostas de células T específicas ao amendoim, foram examinadas em crianças que haviam superado a mesma. Citocinas intracelulares produzidas por células proliferativas foram descritas como as mais enviesadas Th1 naquelas crianças cuja alergia havia desaparecido, muito embora este fato estivesse presente na relação IFN-y ou TFN-alfa e citocinas Th2 , e portanto, não está claro se este fato foi devido a uma diminuição dos níveis de citocinas Th2, um aumento de citocinas Th1 ou ambos. Qamar e cols., estudaram 11 crianças nas quais a tolerância ao ovo e ao amendoim haviam sido recentemente adquiridas em comparação com 22 crianças com alergias ao ovo e o amendoim. A tolerância esteve associada com o aumento nas frequências de Foxp3+ CD25+ CD127low células Treg e IL-10 CD4+ células T e células Treg. A produção de IL-10 desde as células reguladoras T(Treg) foi extraída pelos antígenos tolerados sob estimulação in vitro, como havia sido previamente relatado, utilizando-se a detecção IL-10 na cultura de sobrenadantes.
Imunidade Inata
O sistema de imunidade inata funciona para integrar provocações a partir de deflagradores ambientais (infecção, estresse e lesão) e retransmite esta informação para o sistema imunológico adaptativo. Por exemplo, células dendríticas (CDs) nos tecidos respondem a modelos microbianos, modelos associados a lesões, ou alarmes com uma alteração no fenótipo que determina a função de resposta da célula T, gerada pela apresentação do antígeno. Macrófagos teciduais, também respondem a provocações ambientais e liberam citocinas que podem modelar a resposta imunológica para antígenos derivados desde este tecido. Células CD no sangue periférico de pacientes com AA, apresentam um fenótipo alterado em comparação com controles sadios, acarretando aumento da produção de citocinas pró- inflamatórias, em resposta ao estímulo alergênico. Tais respostas estão provavelmente ligadas às sinalizações através do FceRI nas CDs. Entretanto, alterações na imunidade inata também têm sido demonstradas preceder o desenvolvimento da AA. A presença aumentada de monócitos no sangue do cordão e o número aumentado da produção de citocinas pró-inflamatórias em resposta ao LPS, mostrou-se associada com o surgimento da AA no primeiro ano de vida. Esta resposta aumentada do compartimento mieloide ao LPS, também tem sido identificada nas crianças com alergia ao ovo em comparação aos indivíduos controles não alérgicos. Além disso, níveis de TNF-alfa e a produção de IL-8 em resposta ao LPS (medidos com um ano de idade), mostraram-se significativamente mais elevados nas crianças com alergia persistente ao ovo, do que a transitória conforme foi determinado pelo seguimento clínico. Portanto, fatores que apresentam efeitos moduladores sobre o sistema imunológico inato, podem promover a resolução da alergia de uma forma alergênica não específica.
Microbioma
Há um evidente crescimento do conhecimento sobre o papel chave exercido pelo microbioma na AA. Fatores que alteram a composição do microbioma (parto cesariano e exposição a animais domésticos precocemente na vida), alteram os riscos do desenvolvimento da AA. A disbiose precede a ocorrência da AA. Estudos experimentais em camundongos têm identificado mecanismos protetores induzidos pela microbiota intestinal (fortalecimento da barreira de permeabilidade, produção de IgA secretora e células Treg) que previnem a AA. Bunyavanich e cols., utilizaram a história natural de uma cohort para examinar a relação entre a composição microbiana das fezes e a resolução da alergia ao leite ou ao ovo. Estes autores verificaram que a composição microbiana entre 3 e 6 meses de idade, difere significamente nos lactentes com alergia ao leite, a qual foi resolvida, em comparação com aqueles que apresentaram persistência da alergia ao leite. Esses autores encontraram grandes quantidades de espécies Clostridium e Firmicutes nas amostras fecais daqueles lactentes nos quais a alergia ao leite desapareceu. É interessante notar, que as espécies Clostridium tenham sido identificadas como particularmente potentes indutores das vias das células reguladoras do trato gastrointestinal. Amostras fecais coletadas algum tempo após, entre 6 e 15 meses, não mostraram quaisquer diferenças entre a alergia persistente ao leite e a transitória, ressaltando a existência de uma janela crítica em momentos precoces da vida, nas quais a microbiota influencia o desfecho da enfermidade. No que diz respeito a alergia ao ovo, não foi encontrado nenhum fator preditivo microbiano para o desaparecimento desta alergia, embora uma composição microbiana exclusiva tenha sido observada naqueles lactentes com alergia ao ovo em comparação com aqueles que não apresentavam AA. Entretanto, o estudo da alergia ao ovo incluiu amostras fecais coletadas de 3 a 15 meses, o que reduz a probabilidade de se observar um sinal que era exclusivo entre 3 e 6 meses, no momento da coleta das fezes nos pacientes com alergia ao leite.
Futuras Caminhadas
As compreensões atuais dos mecanismos imunológicos da persistência e da resolução da AA, estão expostas na Figura 5 abaixo.
Ainda não está esclarecido se a persistência da AA é um fenótipo que pode englobar diferentes alimentos. Por exemplo, seria a alergia persistente ao leite mais similar à alergia ao amendoim do que a alergia ao leite que desaparece durante a infância? Haveria aspectos comuns que unem estas alergias alimentares persistentes, tais como, os característicos epitopos de IgE que mantém a resposta IgE a despeito de uma rigorosa restrição alimentar, compartilharia um mesmo sitio comum de sensibilização a AA persistente independentemente do amendoim, leite ou ovo, desempenhariam um papel de coadjuvantes microbianos na sensibilização da persistência da AA? as barreiras para responder a essas questões levantadas, se baseiam no estabelecimento de grandes cohorts, nas quais AA e tolerância, sejam cuidadosamente definidas e avaliadas, e quais bioespécimes para estudos longitudinais são disponíveis para aplicação de um monitoramento imunológico rigoroso e a descoberta de biomarcadores. Deve-se reconhecer que, até o presente momento, significativas contribuições têm sido obtidas para o nosso conhecimento da resolução da AA, porém, questões fundamentais ainda permanecem para serem respondidas.
Referências Bibliográficas
- Berin, MC – J Allergy Clin Immunol 2019;143:453-7
- Qmar, N et al – Clin Exp Allergy 2015;45:1663-72
- Bunyavanich, S et al – J Allergy Clin Immunol 2016;138:1122-30