Afecções Funcionais Gastrointestinais: Um Problema Emergente e de Alta Prevalência

Atenção! As imagens e tabelas que possam ter sido referenciadas no texto estão em processo de atualização! Em breve você acessará uma versão atualizada deste artigo.

Introdução

As Afecções Funcionais Gastrointestinais (AFG) constituem-se em um vasto grupo de entidades clínicas que se manifestam por meio de sintomas crônicos ou recorrentes e que, até o presente momento, não se tem conhecimento a respeito de apresentarem possíveis anormalidades estruturais ou bioquímicas. Por esta razão, representam um conjunto de síndromes altamente desafiadoras as quais freqüentemente deixam de ter um diagnóstico correto e estão associadas com elevadas taxas de morbidade. As AFG são responsáveis por mais de 50% das consultas em Gastroenterologia Pediátrica e de 2 a 4% das visitas aos consultórios dos pediatras generalistas (Nurko & Di Lorenzo, JPGN 47:679,2008). A qualidade de vida dos indivíduos afetados pelas AFG está significativamente mais comprometida que a da população geral, inclusive até mesmo em comparação com aqueles que padecem de asma ou enxaqueca. As crianças diagnosticadas com Dor Abdominal Funcional (DAF) ou Síndrome do Intestino Irritável (SII)sofrem mais episódios de dor abdominal ou mesmo outras dores somáticas, impotências funcionais e sintomas psiquiátricos do que as de grupos controles; além disso, têm também maior probabilidade de apresentarem persistência dos sintomas ao longo da vida adulta. Algumas investigações clínicas têm demonstrado uma associação entre DAF na infância e, a longo prazo, co-morbidades incluindo entre elas, depressão, ansiedade, doenças psiquiátricas, fobias sociais e queixas somáticas.

Mais recentemente, o interesse pelo estudo das AFG e seu reconhecimento pelos pediatras têm crescido de forma significativa. Estudos epidemiológicos cuidadosamente elaborados têm sido realizados, critérios diagnósticos têm sido propostos e validados, progressos evidentes têm sido conseguidos para uma melhor compreensão dos mecanismos patofisiológicos que são a causa básica destas diversas entidades clínicas, e abordagens terapêuticas mais baseadas em evidências estão sendo desenvolvidas. Tudo isso representam ações técnico-científicas que trarão enormes benefícios para os pacientes, em especial, para aliviar os seus sofrimentos. A importância de uma abordagem multidisciplinar nas AFG tem sido largamente estimulada e as afecções funcionais já deixaram de ser consideradas condições que carregavam o estigma de serem algo “da imaginação da cabeça da criança” ou aquela outra noção comumente externada “não há nada de errado com a criança”, para atualmente serem englobadas entre as síndromes, tais como a fibromialgia ou a enxaqueca, verdadeiramente legítimas e aceitas como manifestações de disfunções dos sistemas neuro-entérico ou nervoso central.

Influência Genética

Atualmente reconhece-se a existência de várias AFG, mas em todas elas permanece o mistério da sua fisiopatologia de base. Entretanto, alguns novos conhecimentos dão suporte a evidências de que a hipótese de haver uma interação entre fatores genéticos e a influência do meio ambiente desempenham um importante papel na patogênese destas afecções (Talley, JPGN 47:680,2008).

Tanto a Síndrome do Intestino Irritável (SII) como a Dispepsia Funcional (DF) estão presentes em nichos familiares. Por exemplo, Locke e cols. (Mayo Clinic Proc 75:907-12,2000) demonstraram que indivíduos portadores de SII e de DFapresentam um maior risco de que também seus descendentes diretos venham a apresentar esta mesma sintomatologia. Este achado não foi confirmado quando se tratava da esposa ou esposo, mesmo quando ajustes eram feitos para variáveis, tais como, sexo, idade e somatização.

De qualquer forma estudos de epidemiologia genética, rigorosamente bem elaborados e em larga escala, são necessários para identificar de forma cientificamente convincente a relevância exercida pelo papel funcional dos genes nas AFG.

Ecologia das AFG

A ecologia é uma ciência que estuda as interações dos organismos com seu meio ambiente e vice-versa. Dois importantes princípios da ecologia caracterizam a relação com o meio ambiente. Em primeiro lugar, todos os organismos vivos possuem uma inter-relação continua com outros elementos vivos e não-vivos que fazem parte do meio ambiente. Em segundo lugar, cada um destes ecosistemas e seus componentes estão conectados entre si e se afetam mutuamente (Saps, JPGN 47:684,2008). Há cerca de 60 anos a Organização Mundial da Saúde propôs uma nova dimensão no conceito de saúde ao incluir componentes físicos, psicológicos e sociais em sua definição. Baseando-se neste conceito holístico de saúde, o modelo biopsicosocial dá sustentação à relação e ao equilíbrio entre os sistemas biológicos, fisiológicos e psicológicos para determinar a suscetibilidade das AFG e explicam as variabilidades clínicas e as diferentes respostas aos tratamentos propostos. Este modelo pressupõe que a doença é o resultado da interação em múltiplos níveis dos subsistemas biológicos, psicológicos e sociais. Neste contexto, fatores psico-sociais apresentam conseqüências fisiológicas e patológicas diretas.

Atualmente está bem estabelecido que a flora intestinal desempenha uma importante influência sobre as funções do organismo do ser humano de múltiplas maneiras. Por exemplo, nos pacientes portadores da SII têm sido descritas alterações qualitativas e quantitativas da flora colônica. Um estudo realizado com amostras de fezes (Saps, JPGN 47:684-7,2008) evidenciou diferenças qualitativas entre indivíduos controles sadios e pacientes portadores da SII seja com sintomas de constipação ou diarréia. A pesquisa mostrou que embora os pacientes com sintomas predominantes de constipação possuíam altas concentrações de Veillonella aqueles portadores de diarréia apresentavam baixas taxas de Lactobacillus. Por outro lado, Galatola e cols. (Min Gastroenterol Dietol 37:169-75,1991) encontraram sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado em 56% dos pacientes com sintomas predominantes de diarréia e em 28% daqueles com sintomas predominantes de constipação. Tudo indica que as alterações da flora intestinal associadas à atividade inflamatória celular podem modificar o funcionamento normal dos neurotransmissores sensoriais colônicos, acarretando desta forma uma anormalidade na percepção visceral, dismotilidade, aumento na produção de gás e modificações do hábito intestinal. Um aumento no número de células inflamatórias na lâmina própria da mucosa colônica, a proximidade dos mastócitos às células nervosas e a produção de substâncias que ativam os receptores envolvidos nas sensações viscerais têm sido demonstradas em pacientes portadores da SII.

Infecções entéricas causadas por bactérias enteropatogênicas podem levar secundariamente a manifestações gastrointestinais persistentes caracterizadas como AFG e dispepsia. Um estudo multicêntrico controlado demonstrou a ocorrência de SII pós-infecção entérica em crianças (Saps e cols., J Pediatr 152:812-16,2008). Esta investigação evidenciou um aumento significativo na prevalência de dor abdominal, a qual perdurou durante vários anos, nos pacientes que sofreram gastroenterite de origem bacteriana mesmo após a sua cura. Muito embora a patogênese da ocorrência da SII pós-infecciosa permaneça obscura, especula-se que as alterações funcionais e estruturais sofridas pela mucosa intestinal, o aumento da permeabilidade intestinal, o comprometimento das células neuroendócrinas e a persistência de interações neuroimunológicas provocando uma disfunção sensorial e motora poderiam explicar este fenômeno clínico.

Os distintos sistemas orgânicos também vivem em um equilíbrio integrado entre eles mesmos. O sistema nervoso entérico possui um diálogo bidirecional com o cérebro por meio das vias simpáticas e parassimpáticas as quais integram o assim denominado eixo cérebro-intestino. O estresse, definido como uma ameaça aguda à homeostase pode levar a inflamação, aumento da permeabilidade intestinal, hipersensibilidade visceral e dismotilidade (Hart e cols., Aliment Pharmacol Ther 16:2017-28,2002). Estressantes físicos e psicológicos geralmente estão envolvidos na instalação bem como na modulação dos sintomas da SII. O estresse pode provocar ativação dos mastócitos e sua degranulação, com a correspondente liberação de mediadores químicos, os quais alteram a resposta motora intestinal e mesmo sua capacidade de percepção visceral, através do seu efeito sobre os nervos entéricos e as células dos músculos lisos. Os mastócitos se constituem na via final comum dos vários mecanismos sensibilizantes do trato gastrointestinal tais como o estresse, alergias alimentares e infecções. Tudo indica que todos estes mecanismos fisiopatogênicos moleculares estariam envolvidos no desencadeamento do chamado estresse relacionado ao colégio, oferecendo desta forma uma explicação para os episódios de dor abdominal e outras manifestações somáticas tão frequentemente observadas nas crianças em idade escolar durante o período letivo do ano.

Um possível efeito dos hormônios juntamente com uma importante sustentação ambiental também deve ser levado em conta. Por exemplo, a produção daMelatonina ilustra de maneira bastante nítida a integração entre os ecosistemas e os sistemas orgânicos. A Melatonina, que inicialmente pensou-se encontrar apenas na glândula pineal, também foi demonstrada estar presente em concentrações muito mais elevadas na mucosa intestinal, principalmente nas células enterocromafins. Os níveis séricos da Melatonina variam de acordo com o ciclo da luz do dia e da temperatura do meio ambiente (ecosistema exterior). A Melatonina também é produzida pela flora intestinal e sua concentração no intestino é modulada pelos alimentos ingeridos (ecosistema interno). Inúmeros estudos têm demonstrado um importante efeito da Melatonina sobre a função gastrointestinal (Konturek e cols., J Physiol Pharmacol 58:381-405,2006). A Melatonina afeta o ciclo circadiano, possui uma atividade anti-oxidante e protetora das células, bem como um efeito anti-inflamatório. A Melatonina também regula a motilidade e a sensibilidade intestinal, fatores transcendentes na patogênese da SII. Inúmeros ensaios clínicos já demonstraram o papel benéfico desempenhado pela Melatonina no tratamento da SII e da dispepsia (Lu e cols., Liment Pharmacol ther 22:927-34,2005)). A Melatonina igualmente tem sido empregada no tratamento das cefaléias e da dor abdominal crônica, as quais, como se sabe, são entidades clínicas com uma forte característica de envolvimento biopsicosocial.

Um relevante estudo epidemiológico a respeito da prevalência da Dor Abdominal em crianças de idade escolar

Recentemente, Saps e cols. (Journal of Pediatrics 2009; 154:322-6) publicaram um importante estudo prospectivo envolvendo crianças em idade escolar que apresentavam queixa de dor abdominal e outras manifestações somáticas freqüentes. Trata-se de uma das poucas investigações clínicas disponíveis na literatura médica, de natureza epidemiológica, que avaliou sintomas somáticos de um grande número de crianças a respeito de um problema frequentemente vivenciado não somente pelos profissionais da saúde como também pelos próprios pais das mesmas. Os autores demonstram de forma bastante convincente que sintomas somáticos, dentre eles cefaléia e dor abdominal, são altamente prevalentes em crianças em idade escolar.

Este trabalho de pesquisa teve o escopo de alcançar os seguintes objetivos: 1- estabelecer a prevalência da dor abdominal (DA) nestas crianças; 2- determinar os perfis psicológicos das crianças portadoras de DA; 3- determinar o impacto da DA sobre o absenteísmo escolar.

Desenho do Estudo

Os autores convidaram todos os alunos que cursavam o nível médio de 2 escolas públicas de Chicago para participar deste projeto de pesquisa de caráter prospectivo. Os objetivos do trabalho não foram revelados aos alunos para diminuir o risco de obterem informações não verdadeiras. Foi solicitado o consentimento escrito dos alunos e dos seus respectivos pais. Pesquisadores do grupo de trabalho realizavam visitas semanais para a aplicação de um questionário confidencial aos alunos a respeito da existência e da intensidade dos sintomas que pudessem ter ocorrido na semana anterior. Este questionário era composto de 8 perguntas que compunham um protocolo de investigação previamente validado para a faixa etária das crianças do presente estudo. Cinco perguntas estavam relacionadas com o trato gastrointestinal, a saber: DA, náusea, diarréia, constipação e vômitos. As outras três perguntas eram direcionadas para outras queixas somáticas freqüentes na infância: dores de cabeça, dores no tórax e dores nos membros. A intensidade das dores eram graduadas em uma escala de 0 a 4 pontos da seguinte forma: 0- ausência de dor; 1- pouca dor; 2- alguma dor; 3- muita dor e 4- dor intensa.

Como parte do projeto de pesquisa, durante o período que durou a investigação, também foram obtidas informações dos alunos e seus respectivos pais a respeito de faltas escolares, necessidades de consultas médicas e o número de dias que os pais tiveram que se ausentar do trabalho para cuidar das queixas dos seus filhos.

Resultados

Grupo de estudo

Um total de 237 de potenciais 495 (48%) crianças aceitou participar do estudo. As demais crianças não quiseram participar ou não responderam ao consentimento escrito para participar da investigação. O projeto de pesquisa teve a duração de 6 meses em uma das escolas e de 4 meses na outra.

Respostas completas dos questionários foram obtidas de 4606 sobre os 5175 (89%) possíveis. O grupo de estudo consistiu de 134 meninas e 103 meninos, com idade média de 11,8 anos, variando de 8 a 15 anos.

Sintomas, comportamento da dor e frente à dor

Aproximadamente 72% das crianças relataram pelo menos 1 sintoma somático por semana, e cerca de 45% dos participantes informaram sofrer pelo menos 1 sintoma gastrointestinal durante o período do estudo. DA foi o sintoma gastrointestinal mais frequente, sendo que 90% das crianças referiram haver sofrido de DA pelo menos uma vez durante o tempo da investigação. A prevalência geral de DA por semana foi de 38%, sendo que a persistência da DA por mais de 4 semanas consecutivas foi relatada por 52% das crianças, acima de 8 semanas por 24%, e por mais de 12 semanas consecutivas em 18% das crianças.

A prevalência de outros sintomas gastrointestinais foi a seguinte: náusea 23%, diarreia 9%, constipação 8% e vômitos 7%.

Dor de cabeça foi a queixa somática mais frequente e esteve presente semanalmente em 42% das crianças. A grande maioria das crianças (80%) relatava sua queixa para um adulto quando da ocorrência da dor, sendo que 56% queixavam-se exclusivamente para a mãe, 22% para a mãe ou o pai, e apenas 7% exclusivamente para o pai. De acordo com as crianças os pais respondiam às suas queixas de diversas maneiras, a saber: providenciavam medicação para atenuar a dor (44%), recomendavam que a criança fosse deitar (41%), que comesse ou bebesse algo (12%), fosse ao médico (8%), procurasse relaxar (4%), convivesse com a dor (4%), fizesse compressas quentes no local da dor (3%), tomasse um banho quente (3%) ou fosse ao banheiro (3%).

Houve uma associação diretamente proporcional de altas taxas de ansiedade, de depressão e de baixa qualidade de vida à medida que a DA tornava-se mais intensa.

As crianças que se queixavam mais frequentemente de DA apresentavam uma maior tendência a faltar às aulas; 28% das crianças faltaram às aulas pelo menos uma vez durante o período do estudo devido a um episódio de DA. Cerca de 4% das crianças faltaram às aulas uma vez por semana, e aquelas crianças que se queixavam de DA apresentaram uma tendência 4 vezes maior de faltar às aulas do que aquelas que não apresentavam esta queixa. O absenteísmo aumentou significativamente de forma diretamente proporcional com a intensidade da DA.

Apenas 4 crianças buscaram atenção médica durante o período do estudo devido a uma crise de DA e 10% dos pais faltaram ao trabalho para cuidar do seu filho devido a DA.

Conclusões

Ficou evidenciado que a DA é usualmente um problema que se torna crônico e que as crianças que já se queixavam de DA no início da investigação apresentaram uma nítida tendência a continuar com a mesma queixa durante todo o período do estudo. Houve também uma alta porcentagem de crianças que persistiram com a queixa de DA por um período de tempo superior a 8 semanas. Aliás, este é o período de tempo considerado mínimo necessário para que os pacientes sejam catalogados como portadores de uma síndrome funcional gastrointestinal definida pelos critérios de Roma III (Rasquin e cols., Gastroenterology 2006;130:1527-37). Foi também demonstrado que os sintomas somáticos, incluindo a DA, são comuns em crianças escolares e que esses sintomas estão associados com baixa qualidade de vida, outras afecções mórbidas psicológicas e somáticas, absenteísmo escolar e que muitas vezes levam seus pais a faltar ao trabalho.

Entendo que trabalhos de investigação clínica desta natureza constituem importantes contribuições científicas para uma melhor compreensão dos fenômenos psico-sócio-ambientais que estão presentes na deflagração das diversas SFG. Além disso, também servem de alerta para a comunidade pediátrica no sentido de se poder reconhecer sua real prevalência e seus impactos sobre a saúde das crianças.

Os Critérios de Roma III para o Diagnóstico das Afecções Funcionais Gastrointestinais (AFGs): um grande avanço na melhor compreensão de uma séria preocupação familiar

A Fundação Roma tem como missão estabelecer metas que visem “melhorar a qualidade de vida das pessoas que sofrem de alguma das diversas AFGs”. Essas metas estão dirigidas para “promover o reconhecimento e legitimação das AFGs, bem como desenvolver uma compreensão científica dos seus mecanismos fisiopatológicos e, além disso, proporcionar um tratamento adequado”.

Em 1997 sete gastroenterologistas pediátricos se reuniram em Roma para elaborar o primeiro grupo de critérios baseados em sintomas para o diagnóstico das AFG sem Pediatria e que recebeu a designação dos critérios de Roma II (Gut 1999;45 (Suppl II):I160-68). Vale à pena ressaltar que os critérios de Roma I apenas se restringiram aos aspectos das AFG em adultos. Sete anos mais tarde, portanto em 2004, foram criados dois grupos de trabalho para revisar os critérios diagnósticos das AFG em Pediatria. Estes dois grupos de trabalho tiveram por missão, baseados nas pesquisas publicadas nos anos precedentes, melhorar e ampliar os critérios inicialmente propostos. Este encontro resultou na elaboração de dois tipos de critérios diagnósticos para as AFG, de acordo com o grupo etário pediátrico, assim distribuídos: 1- Lactentes e Pré-escolares (Gastroenterology 2006;130:1519-26) e 2- Escolares e Adolescentes (Gastroenterology 2006;130:1527-37), os quais passarei a descrever e discutir.

As AFG nos lactentes incluem uma combinação variada de sintomas que geralmente são dependentes da idade, tem a característica de serem crônicas ou recorrentes, e que não são explicáveis por anormalidades estruturais nem tampouco bioquímicas. Estes sintomas durante toda a infância, na imensa maioria das vezes (salvo não ocorra ação iatrogênica), não afetam o crescimento e o desenvolvimento (por exemplo, regurgitação fisiológica do lactente devido à imaturidade do esfíncter esofágico inferior), ou podem surgir como resposta consequente a uma má adaptação comportamental de um estímulo interno ou externo (por exemplo, constipação funcional, retenção de fezes desencadeada por defecação dolorosa).

A expressão clínica das AFG depende do estágio de desenvolvimento autonômico, afetivo e intelectual do indivíduo e concomitantemente com algum distúrbio orgânico ou psicológico. Para exemplificar de uma maneira mais objetiva, tomemos o caso da regurgitação fisiológica do lactente como uma expressão de um sintoma funcional, a qual é um problema transitório que perdura alguns meses durante o primeiro ano de vida, mas que causa grandes preocupações nos pais. Trata-se, aqui, simplesmente da imaturidade do esfíncter esofágico inferior, não havendo quaisquer anormalidades detectáveis, sejam estruturais e/ou bioquímicas. Outro exemplo característico diz respeito à diarreia da Síndrome do Intestino Irritável, a qual costuma instalar-se a partir do sexto mês de vida e que avança de forma recorrente até a idade pré-escolar, sem causar qualquer agravo nutricional, caso não ocorra ação iatrogênica.

A decisão dos familiares de buscar atenção médica em decorrência dos sintomas apresentados é condicionada pelo grau de preocupação dos mesmos para com seu filho. O limiar de preocupação dos familiares varia dependendo das experiências prévias e expectativas, do grau da capacidade de superação do problema e também da idéia de percepção de doença. Por esta razão, a consulta ao médico, neste caso não se trata somente de um sintoma que a criança apresenta, mas tão importante quanto, trata-se do receio dos familiares em relação ao risco de gravidade que os sintomas podem causar. Portanto, o médico deve além de estabelecer o diagnóstico correto também reconhecer a potencial extensão do impacto emocional que os sintomas acarretam na esfera familiar. Desta forma, toda conduta planejada tem necessariamente que atender aos anseios de ambos, criança e familiares.

O manejo terapêutico eficaz do problema depende da garantia do estabelecimento de uma aliança confiável entre o médico e os familiares. Como é do conhecimento geral, durante os primeiros anos de vida a criança não consegue, de forma acurada, relatar seus sintomas, sejam eles náuseas ou dor. O lactente e o pré-escolar não são capazes de discriminar entre um desconforto físico ou emocional. Assim sendo, o médico depende dos relatos e das interpretações dos familiares, posto que estes supostamente são aqueles que melhor conhecem as reações dos seus filhos, aliados das suas vivências como profissional da saúde, para diferenciar entre o estado de saúde e o da doença.

O grupo de trabalho constituído por experts, internacionalmente reconhecidos na área, propôs a seguinte classificação para as AFGs no lactente e no pré-escolar:
1- regurgitação fisiológica; 2- síndrome da ruminação do lactente; 3- síndrome dos vômitos cíclicos; 4- cólica do lactente; 5- diarreia funcional ou síndrome do intestino irritável; 6- disquezia do lactente (dificuldade para evacuar, fazendo grande esforço); 7- constipação funcional.

Critérios Diagnósticos das AFGs

É necessário enfatizar que as AFGs não têm porque oferecer riscos à saúde dos pacientes sempre e quando os sintomas relatados pelos familiares são suficientemente bem explicados de tal forma a possibilitar ao médico a compreensão do problema. Isto possibilitará que o médico, por sua vez, elucide os familiares a respeito da ausência de efeitos adversos das manifestações clínicas. Por outro lado, caso venha a ocorrer equívoco diagnóstico, este ato, automaticamente, será acompanhado de tratamento inapropriado, posto que são sintomas meramente funcionais, o que poderá ser causa de sofrimento físico e emocional perfeitamente evitáveis. Por estas razões, segue adiante a discriminação dos elementos fundamentais que compõe os critérios diagnósticos de cada uma das AFGs.

1- Regurgitação Fisiológica do Lactente

A regurgitação do conteúdo gástrico para o esôfago e a boca é um fenômeno bastante frequente entre os lactentes. A regurgitação em um lactente com aparência normal deve ser encarada como uma questão do desenvolvimento e não como uma enfermidade. A regurgitação se caracteriza pelo retorno involuntário do alimento previamente ingerido até a boca ou mesmo para o exterior. A regurgitação deve ser diferenciada do vômito, o qual é definido como um reflexo do sistema nervoso central envolvendo tanto os músculos lisos (involuntários) como os estriados (voluntários) onde o conteúdo gástrico é expelido forçadamente através da boca devido a movimentos coordenados que envolvem o intestino delgado, o estômago, o esôfago e o diafragma.

Para a caracterização do Refluxo Gastro-esofágico Fisiológico devem estar incluídos todos os seguintes sintomas que se apresentam em um lactente aparentemente normal entre as 3 semanas e 1 ano de vida:

1. Regurgitação de 2 ou mais vezes por dia por pelo menos 3 semanas.
2. Ausência de náuseas, hematêmese, aspiração, apnéia, déficit de ganho ponderal, dificuldades para se alimentar ou para deglutir o alimento, ou postura anômala.

2- Síndrome da Ruminação

Trata-se de uma afecção rara caracterizada pela regurgitação voluntária do conteúdo gástrico para a boca por estímulo próprio. A ruminação é a regurgitação dos alimentos recentemente deglutidos, os quais são remastigados, e que tanto podem ser deglutidos novamente como expelidos para o exterior. Embora a ruminação se enquadre como uma AFG, ela reflete uma afecção psiquiátrica causada por deprivação social.

Para a caracterização da Síndrome da Ruminação devem estar incluídos todos os seguintes sintomas que se apresentam durante pelo menos 3 meses:

1. Contrações repetitivas dos músculos abdominais, diafragma e da língua.
2. Regurgitação do conteúdo gástrico para a boca, o qual é mastigado novamente e que pode ser deglutido ou expelido para o exterior.
3. Deve estar acompanhada de 3 ou mais características, tais como:
a. início entre 3 e 8 meses
b. mostrar-se resistente ao manejo terapêutico para a doença do refluxo gastro-esofágico, ao emprego de drogas anticolinérgicas, mudanças de fórmulas alimentares e alimentação por sonda naso-gástrica
c. não estar associada a sinais de náusea ou estresse
d. não ocorrer durante o sono ou quando a criança está interagindo com outras pessoas.

3- Síndrome dos Vômitos Cíclicos

síndrome dos vômitos cíclicos (SVC) consiste na ocorrência de episódios recorrentes e estereotipados de náuseas intensas e vômitos que perduram horas ou dias e que são separados por intervalos isentos de sintomas que podem durar semanas ou meses. A frequência dos vômitos pode variar de 1 a 70 episódios por ano e em média alcançam 12 episódios por ano. As crises podem ocorrer tanto em intervalos regulares como esporadicamente. Tipicamente, os episódios costumam ter início no mesmo período do dia, mais comumente durante a noite ou pela manhã, e a duração dos mesmos em geral obedece uma constante em um determinado paciente. A SVC atinge sua maior intensidade durante as primeiras horas de cada crise e os vômitos tendem a diminuir em frequência e intensidade logo após este período de tempo, muito embora as náuseas continuem a estar presentes até o final de um determinado episódio. Os episódios tendem a se findar tão rapidamente quanto ao seu começo e são marcados por uma pronta recuperação do bem estar clínico, desde que o paciente não tenha sofrido perdas hidro-eletrolíticas significativas. Os principais sinais e sintomas que acompanham as crises de vômitos incluem: palidez, fraqueza, salivação excessiva, dor abdominal, intolerância aos ruídos, à luz e a odores, dor de cabeça, fezes amolecidas, febre, taquicardia, hipertensão e leucocitose. Cerca de 80% dos pacientes conseguem identificar as circunstâncias ou eventos que desencadearam os ataques, tais como alterações do estado emocional, infecções, asma ou exaustão física.

Para a caracterização da SVC devem estar incluídos todos os seguintes sintomas, a saber:

1. Dois ou mais episódios de náuseas intensas e vômitos incoercíveis durando horas ou dias.
2. Retorno ao estado clínico usual de saúde que perdura durante semanas a meses.

4- Cólica do Lactente

O termo “cólica” implica em dor abdominal causada por obstrução do fluxo envolvendo os rins, a vesícula biliar ou o intestino. Por outro lado, a denominação“cólica do lactente” é atribuída a uma síndrome comportamental que afeta o lactente de tenra idade cuja manifestação se dá por longas crises de choro aparentemente devidas à dor abdominal. A “cólica do lactente” foi definida no passado como paroxismos de irritabilidade, mal estar e/ou crises de choro que perduram por mais de 3 horas por dia e que costumam ocorrer mais de 3 dias por semana. Embora até o presente momento não tenha sido possível comprovar que a “cólica do lactente” seja causada por uma dor abdominal ou mesmo em qualquer outra parte do corpo, os pais, geralmente, assumem que a causa do choro excessivo se deve a dor abdominal de origem gastrointestinal.

É necessária a familiaridade com a “cólica do lactente” para que se evite diagnóstico e tratamento equivocados. Embora as crises de choro possam se dever à dor causada por um processo inflamatório naqueles lactentes que apresentam hipersensibilidade às proteínas das fórmulas lácteas é importante enfatizar que, por definição, a “cólica do lactente” não é causada por uma enfermidade orgânica. Os episódios de “cólica” começam e terminam subitamente sem que alguma causa lógica esteja agindo e geralmente soem acontecer ao anoitecer. As crises de choro tendem a desaparecer espontaneamente por volta dos 3 a 4 meses de idade, sendo que na média o pico destas crises é alcançado ao redor das 6 semanas e costumam diminuir por volta das 12 semanas de vida. Provavelmente, a “cólica do lactente” representa o limite superior da “curva de choro” de um lactente normal. A cólica significaria, portanto, “alguma coisa que o lactente externa, muito mais do que uma condição patológica que ele possui”.

Para a caracterização da “Cólica do Lactente” devem estar incluídostodos os seguintes sintomas nos lactentes desde o nascimento até os 4 meses de idade, a saber:
1. Paroxismos de irritabilidade, desconforto ou choro que se iniciam e se findam sem que exista alguma causa óbvia.
2. Os episódios geralmente duram 3 ou mais horas por dia e devem ocorrer pelo menos 3 vezes por dia durante pelo menos 1 semana.
3. Não pode ocorrer déficit do ganho pondero-estatural.

5- Diarréia Funcional

A diarréia funcional é definida como a evacuação indolor, diária de 3 ou mais episódios de fezes mal formadas, por 4 ou mais semanas com início durante o período de lactente evoluindo até a idade pré-escolar. Não há evidencias de déficit pondero-estatural caso a dieta seja adequada quanto à oferta protéico-calórica. A criança se mostra ativa e não apresenta qualquer perturbação do seu estado clínico em decorrência da eliminação de fezes amolecidas, e os sintomas desaparecem espontaneamente quando a criança chega à idade escolar.

Para a caracterização da Diarréia Funcional devem estar incluídos todos os seguintes sintomas nos lactentes desde os 6 meses até os 4 anos de idade, a saber:

1. Eliminação indolor, diária de 3 ou mais episódios de fezes mal formadas.
2. Sintomas perduram por mais de 4 semanas.
3. Início dos sintomas ocorrem a partir dos 6 meses e se estendem até os 36 meses de vida.
4. As evacuações ocorrem durante o período do dia que a criança está em estado alerta.
5. Não ocorre déficit pondero-estatural caso a ingestão alimentar seja adequada quanto à composição protéico-calórica.

Distúrbios da Evacuação

A frequência das evacuações nos lactentes e pré-escolares sadios tende a diminuir à medida que as crianças avançam na idade. Lactentes que recebem aleitamento natural chegam a evacuar até 12 vezes ao dia ou podem mesmo evacuar apenas 1 vez por semana. Por outro lado, lactentes que recebem aleitamento artificial à base de fórmulas tendem a eliminar fezes mais firmes desde as primeiras semanas de vida. Em particular, esses lactentes podem sofrer dor para evacuar e, em consequência, passam a apresentar predisposição para desenvolver constipação funcional.

Usualmente, ocorre um declínio na frequência das evacuações, a qual em média é de 4 vezes por dia na primeira semana para 1 a 2 vezes por dia até o quarto ano de vida. Aproximadamente 97% das crianças entre 1 e 4 anos de vida evacuam de 3 vezes diariamente a 1 vez em dias intercalados. É importante enfatizar que não é possível acelerar a aquisição dos controles esfincterianos vesical e intestinal por meio da realização de um treinamento intensivo. A iniciativa demonstrada pela própria criança do desejo de se livrar das fraldas é um indicativo importante de que ela já se encontra em condições de receber o treinamento apropriado. A maioria das crianças alcança o controle voluntário parcial da evacuação ao redor dos 18 meses de vida, porém a idade em que este controle torna-se completo varia consideravelmente. É bem conhecido que aos 4 anos de idade 98% das crianças detém o controle esfincteriano voluntariamente.

As preocupações relacionadas aos problemas da evacuação são responsáveis por aproximadamente 25% das consultas ambulatoriais ao gastroenterologista pediátrico, e disto passaremos a nos ocupar a seguir.

1- Disquezia do Lactente

A disquezia se caracteriza pelo relato dos familiares dos lactentes quando estes últimos apresentam dificuldades para evacuar. Nestas circunstâncias o lactente faz um grande esforço para evacuar durante longos minutos, com choro intenso, irritabilidade e rubor facial devido ao esforço. Os sintomas costumam persistir durante cerca de 10 a 20 minutos até que venha a ocorrer a eliminação de fezes pastosas e às vezes mesmo fezes líquidas. Estes sintomas são o prenúncio de que mais adiante surgirão os sintomas clássicos da Síndrome do Intestino Irritável. Os sintomas se iniciam nas primeiras semanas de vida e desaparecem espontaneamente depois de algumas semanas.

O médico deve obter uma história clínica detalhada, analisar o gráfico de crescimento pondero-estatural e realizar um exame clínico que inclui toque retal (na presença dos familiares) para descartar anormalidades ano-retais.

Os critérios diagnósticos para a “Disquezia do Lactente” devem incluir todos os seguintes sintomas nos lactentes desde o nascimento até os 6 meses de idade:

1. Pelo menos 10 minutos de grande esforço para evacuar associado a choro intenso antes da evacuação.
2. O lactente não deve apresentar nenhum outro problema de saúde.
2- Constipação Funcional

Constipação é uma queixa principal em cerca de 3% das consultas em Pediatria, e aproximadamente 40% das crianças desenvolvem o problema durante o primeiro ano de vida.
Admite-se que a dor para evacuar seja uma razão primordial para o surgimento do comportamento de retenção das fezes. A identificação de uma massa fecal palpável nos flancos antes da evacuação representa um aspecto característico da constipação funcional. A defecação dolorosa de um bolo fecal geralmente acarreta uma resistência para a criança evacuar e isto leva a um círculo vicioso de difícil solução.

O diagnóstico da constipação funcional deve ser estabelecido pela história clínica e pelo exame físico. A rigor, pouca ou nenhuma investigação laboratorial é necessária ou desejável para se estabelecer o diagnóstico. A instalação dos sintomas freqüentemente surge durante 1 de 3 períodos da vida, a saber: (1) na fase de lactente, com o surgimento de fezes endurecidas, geralmente no momento que corresponde à transição do aleitamento natural para a introdução de fórmulas comerciais e/ou a introdução de dieta sólida; (2) na idade pré-escolar durante a fase do treinamento esfincteriano, quando o lactente está tentando controlar suas evacuações e eventualmente pode apresentar dor ao evacuar; (3) quando a criança tem que ir para a escola e por questões variadas evita evacuar durante todo o dia. As crianças que apresentam comportamento de retenção usualmente assumem posições e atitudes que dificultam a ação fisiológica da evacuação, tais como permanecer na posição ereta, agarrar-se a alguma mobília, cruzar as pernas, ou mesmo esconder-se em algum canto do ambiente doméstico.

Em algum momento durante a vigência da constipação pode vir a ocorrer escape fecal e como as fezes que são eliminadas pelo escape geralmente são líquidas podem ser confundidas com um episódio de diarréia. O escape fecal ocorre quando o bolo fecal endurecido mantém contato com a mucosa e, por atrito, provoca uma secreção líquida que é eliminada quando o paciente inadvertidamente relaxa o esfíncter anal externo (durante o sono, devido ao cansaço ou na tentativa de eliminação de gases).

Ao exame físico geralmente é possível palpar o bolo fecal no flanco esquerdo na região que topograficamente corresponde ao colo descendente e ao sigmóide. O toque retal deve ser realizado (na presença dos familiares) para confirmar o diagnóstico, porém, sempre após o estabelecimento de uma relação de boa intimidade e confiança com o paciente, para evitar uma reação negativa de medo ou constrangimento.

Os sintomas se devem ao esforço voluntário da criança para evitar a evacuação. A dor abdominal ocorre em virtude das contrações colônicas normais, que impulsionam o conteúdo luminar em sentido distal e o qual se choca com o esfíncter anal externo contraído (músculo voluntário).

Os critérios diagnósticos para a “Constipação Funcional” devem incluir todos os seguintes sintomas nos lactentes até os 4 anos de idade:

1. Duas ou menos evacuações por semana
2. Pelo menos um episódio de escape fecal por semana
3. História de retenção excessiva de fezes
4. História de dor para evacuar e fezes endurecidas
5. Presença de bolo fecal palpável no reto
6. História de fezes de grande calibre que chegam a obstruir o vaso sanitário.

Afecções Funcionais Gastrointestinais em Escolares e Adolescentes (AFGs)

As AFGs nos escolares e adolescentes também são definidas como uma combinação variável de sintomas gastrointestinais crônicos e/ou recorrentes que não são explicados por anormalidades estruturais ou bioquímicas. O Comitê de experts (Gastroenterology 2006;130:1527-37) decidiu estabelecer os critérios diagnósticos para as crianças e adolescentes abrangendo entre os 4 e os 18 anos de idade.Além disso, também ficou decidido que continuariam a basear-se na classificação das AFGs tomando-se em conta as principais queixas relatadas pelos próprios pacientes e/ou seus familiares mais do que levar em consideração os órgãos afetados. Na verdade, os critérios foram desenhados para servirem de ferramentas diagnósticas, e o Comitê entendeu que a classificação baseada em sintomas seria de maior auxílio para o clínico. Esta assertiva mostrou-se particularmente útil no que se refere à dor abdominal de caráter funcional quando a opção diagnóstica da dor abdominal aventada pelo médico tiver sido incorporada somente após terem sido eliminadas as outras causas etiológicas relacionadas à dor abdominal.

Na Tabela abaixo estão discriminadas as AFGs consideradas pelo Comitê de experts:

A. Afecções Funcionais

A1. Vômitos e Aerofagia

  1. Síndrome da Ruminação do Adolescente
  2. Síndrome dos Vômitos Cíclicos
  3. Aerofagia

A2. Dor Abdominal Relacionada às AFGs

  1. Dispepsia Funcional
  2. Síndrome do Intestino Irritável
  3. Enxaqueca Abdominal
  4. Dor Abdominal Funcional da Infância
  5. Síndrome da Dor Abdominal na Infância

B. Constipação e Incontinência Fecal

  1. Constipação Funcional
  2. Incontinência Fecal Não Retentora

A1.1 Síndrome da Ruminação do Adolescente

A ruminação é mais frequente em meninos do que em meninas. O diagnóstico se caracteriza pela repetidas regurgitações sem qualquer esforço, a nova deglutição e/ou a expulsão para o exterior dos alimentos, alguns minutos após a sua ingestão. Este comportamento costuma perdurar por cerca de uma hora e raramente ocorre à noite. As seguintes enfermidades devem ser descartadas através de investigação apropriada: refluxo gastro-esofágico, acalasia esofágica, gastropresia, bulemia nervosa e doenças anatômicas obstrutivas.

Geralmente, detecta-se uma anormalidade característica no estudo manométrico evidenciada por um aumento sincronizado da pressão, através de múltiplos canais, no intestino superior. Este fenômeno é atribuído a um aumento da pressão intra-abdominal gerada pela contração dos músculos esqueléticos da parede abdominal. Essas ondas pressóricas têm sido documentadas em 40 a 67% dos adolescentes que sofrem de ruminação, assim como também foi encontrado um moderado retardo no tempo de esvaziamento gástrico em 45% dos casos.

Em aproximadamente 1/3 dos casos de ruminação têm sido observados distúrbios psicológicos que incluem depressão, ansiedade, comportamento obsessivo-compulsivo e até mesmo outros problemas de ordem emocional.

Para a caracterização diagnóstica da Síndrome da Ruminação do Adolescente devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1- Repetidas regurgitações indolores e nova deglutição ou expulsão do alimento que:
a- se inicia logo após a ingestão da comida
b- não ocorre durante o sono
c- não responde aos tratamentos rotineiros para o refluxo gastro-esofágico
2- Não ocorrem náuseas
3- Não há evidencias da existência de doenças inflamatórias, anatômicas, metabólicas ou neoplásicas que possam justificar as manifestações clínicas.

A1.2 Síndrome dos Vômitos Cíclicos

Muito embora esta síndrome também esteja presente em escolares e adolescentes, ela já foi profundamente discutida em seção anterior na qual nos referimos aos lactentes e pré-escolares, e não há quaisquer diferenças dignas de nota para serem aqui expandidas.

Para a caracterização diagnóstica da Síndrome dos Vômitos Cíclicos devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:
1- Dois ou mais episódios de náuseas intensas associados a vômitos repetidos ou ânsias que perduram durante horas a dias.
2- Há um retorno ao estado usual de saúde o qual perdura por semanas ou meses.

A1.3 Aerofagia

Aerofagia tem sido observada em aproximadamente 9% da população institucionalizada por problemas de deficiências mentais.

Em geral, o ar é deglutido de forma não perceptível pelos pacientes e familiares e deve ser objetivamente verificado pelo médico. A excessiva deglutição de ar é frequentemente causada pela ansiedade e pode vir acompanhada de uma crise de asma. Em virtude da concomitante distensão abdominal, a aerofagia com frequência é confundida com outras anormalidades da motilidade, tais como a síndrome da pseudo-obstrução e síndromes digestivo-absortivas. Nos pacientes que sofrem de aerofagia, a distensão abdominal regride ou desaparece durante o sono. Os testes do Hidrogênio no ar expirado podem ser utilizados para descartar a existência de má absorção aos carboidratos e/ou a síndrome do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado.

É essencial que se explique aos familiares e aos pacientes a origem do problema para que estes se tranquilizem. Deve-se também recomendar aos pacientes que comam vagarosamente, evitem mascar gomas ou beber líquidos gaseificados, além de oferecer técnicas psicoterapêuticas para diminuir a ansiedade.

Para a caracterização diagnóstica da Aerofagia devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1. Deglutição de ar
2. Distensão abdominal devido à presença de ar intraluminal
3. Eructações recorrentes e/ou aumento na eliminação de gases.
A2. Dor Abdominal Relacionada às AFGs

Os principais sintomas e sinais de alarme que geralmente se encontram AUSENTES nas crianças e adolescentes portadoras de dor abdominal relacionadas às AFGs estão listados na tabela abaixo, a saber:

Dor persistente nos quadrantes superior ou inferior direito
Disfagia
Vômitos persistentes
Sangramento gastrointestinal
História familiar de doença inflamatória intestinal, doença celíaca ou úlcera péptica
Dor abdominal que desperta a criança do sono
Artrite
Doença perianal
Perda de peso involuntária
Desaceleração do crescimento
Retardo da puberdade
Febre de origem desconhecida

Os membros do Comitê de experts reconheceram a grande variabilidade na intensidade e no fenótipo da apresentação da dor abdominal relacionada às AFGs e, portanto, decidiram dividir a dor abdominal funcional em 2 categorias individualizadas: dor abdominal funcional na infância e a síndrome da dor abdominal na infância (SDAI). Desta forma, esta última categoria inclui uma população de pacientes com distribuição mais homogênea de sintomas. Feita esta ressalva passarei a abordar os aspectos mais relevantes das manifestações clínicas deste capítulo das AFGs.

A2.1 Dispepsia Funcional

Estudos realizados em comunidades e em colégios revelaram que a queixa de dispepsia varia entre 3.5% e 27% segundo o gênero e o país de origem da pesquisa. Por exemplo, na Itália a prevalência da dispepsia referida por Pediatras generalistas foi de 0,3%, enquanto que nos Estados Unidos a prevalência referida por Pediatras gastroenterologistas variou de 12,5% a 15,9% entre as crianças de 4 a 18 anos de idade.

Quanto à avaliação clínica os membros do Comitê de experts concordaram que a endoscopia digestiva alta está indicada naqueles pacientes que persistem com sintomas de dispepsia a despeito do uso de antiácidos ou naqueles pacientes que apresentam recidiva dos sintomas após a suspensão do medicamento antiácido e nos casos que se deseja confirmar o diagnóstico de infecção associada ao Helicobacter pylori.
Anormalidade na atividade mioelétrica gástrica, retardo no esvaziamento gástrico, alteração na motilidade antro-duodenal e volume gástrico reduzido em resposta à alimentação têm sido descritas em crianças que sofrem de dispepsia funcional. Por outro lado, esvaziamento gástrico rápido associado a trânsito intestinal lento tem sido demonstrado em crianças dispépticas cujo sintoma predominante é a distensão abdominal.

Para a caracterização diagnóstica da Dispepsia Funcional devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1Persistência ou recorrência da dor ou sensação de desconforto localizada na região supra-umbilical
2. Dor não é aliviada após a evacuação
3. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos, metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.

A2.2 Síndrome do Intestino Irritável (SII)

No mundo ocidental a SII tem sido diagnosticada em cerca de 6% das crianças que cursam o ensino fundamental e em 14% das crianças no ensino médio. A prevalência da SII sobe para 22% a 45% das consultas em gastroenterologia pediátrica.

Os sintomas que cumulativamente dão suporte ao diagnóstico são: a) freqüência anormal das evacuações – 4 ou mais evacuações por dia e 2 ou menos evacuações por semana; b) formato anormal das fezes (secas/endurecidas ou amolecidas/líquidas); c) eliminação das fezes com dificuldade e sensação de evacuação incompleta; d) presença de muco nas fezes; e) sensação de distensão abdominal.
Hipersensibilidade visceral tem sido descrita em crianças que sofrem da SII. Esta hipersensibilidade pode ser devida a inúmeras causas incluindo processo infeccioso, inflamação, trauma intestinal, alergia, e também pode estar associada à anormalidade na motilidade intestinal. Há nítidas evidências de predisposição genética, bem como está associada a situações de estresse e sinais psicológicos de ansiedade, depressão e outras múltiplas manifestações somáticas. É importante ressaltar que um melhor conhecimento da SII por parte do paciente e seus familiares auxilia de forma efetiva na atenuação dos sintomas.

Para a caracterização diagnóstica da Síndrome do Intestino Irritável devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1. Desconforto abdominal (uma sensação desconfortável não descrita como dor) ou dor abdominal associada a 2 ou mais dos seguintes sintomas durante pelo menos 25% do tempo:

a) alivia com a evacuação
b) instalação está associada com a alteração do rítmo intestinal
c) instalação está associada a alteração no formato das fezes
2. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos, metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.

A2.3 Enxaqueca Abdominal

Alguns autores têm sugerido que a enxaqueca abdominal, a síndrome dos vômitos cíclicos, e a enxaqueca com cefaléia constituem variantes de uma mesma afecção, a qual afeta os pacientes geralmente alternando de uma entidade clínica para a outra.
enxaqueca abdominal afeta entre 1% a 4% das crianças, é mais frequente em meninas do que em meninos na proporção de 3:2 e costuma surgir ao redor dos 7 anos apresentando pico de incidência entre 10 e 12 anos de idade.

Para a caracterização diagnóstica da Enxaqueca Abdominal devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1. Episódios paroxísticos de intensa dor periumbilical que perdura por pelo menos 1 hora.

2. Períodos assintomáticos de estado normal de saúde que perduram por semanas ou meses.

3. A dor interfere nas atividades normais.

4. A dor está associada a 2 ou mais dos seguintes sintomas:

a) Anorexia
b) Náuseas
c) Vômitos
d) Dor de cabeça
e) Fotofobia
f) Palidez

5. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos, metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.

A2.4 e A2.5 Dor Abdominal Funcional da Infância e Síndrome da Dor Abdominal na Infância

Nestas duas entidades uma limitada, porém, razoável investigação laboratorial de rastreamento para descartar algumas enfermidades de origem orgânica deve incluir hemograma completo, velocidade de hemosedimentação, proteína C reativa, urina tipo I e cultura. Outros perfis bioquímicos, tais como, hepáticos e renais, bem como exames diagnósticos (cultura de fezes, parasitológico de fezes e teste do Hidrogênio no ar expirado para detectar má absorção aos caboidratos) também são recomendáveis dependendo dos sintomas predominantes referidos pelo paciente, do grau de limitação funcional ou mesmo da intensidade da ansiedade familiar.

Para a caracterização diagnóstica da Dor Abdominal Funcional da Infância devem ser incluídas todas as seguintes manifestações:

1. As manifestações clínicas devem ocorrer pelo menos uma vez por semana durante pelo menos 2 meses.
2. A dor abdominal pode ser episódica ou contínua.
3. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.
Para a caracterização diagnóstica da Síndrome da Dor Abdominal Funcional da Infância a dor abdominal deve estar presente em pelo menos 25% do tempo e 1 ou mais dos seguintes sintomas devem estar incluídos:
1. Alguma perda da capacidade funcional diariamente.
2. Algum sintoma somático adicional, tal como dor de cabeça, dores nos membros e/ou dificuldade para dormir, deve estar presente.
Em minha opinião levando-se em consideração os muitos anos de experiência profissional intensamente por mim vividos nesta especialidade, entendo que estas duas entidades rotuladas pelo Comitê de experts de forma individualizada, representam nada mais do que uma discreta variante da Síndrome do Intestino Irritável. Ao meu ver esta dicotomia da classificação traz mais confusão do que esclarecimento diagnóstico.

B.1 Constipação Funcional

O termo Constipação Funcional é utilizado para designar todas as crianças nas quais a constipação não apresenta uma etiologia orgânica. Estima-se que a incidência da constipação esteja presente entre 0,3% a 8% da população pediátrica e representa de 3% a 5% das visitas ao consultório do Pediatra generalista. Entretanto, representa uma taxa de até 25% das consultas ao Gastropediatra. Pesquisas clínicas têm demonstrado que uma história familiar positiva para constipação está presente entre 28% a 50% das crianças portadoras de constipação, e mais ainda, tem sido descrita uma incidência mais elevada em gêmeos monozigóticos do que em dizigóticos. O pico da incidência costuma ocorrer durante o treinamento do controle esfincteriano, entre os 2 e os 4 anos de idade, com maior prevalência entre os meninos. É importante ressaltar que a ocorrência de escape fecal (a passagem involuntária de material fecal na forma semi-líquida sujando a roupa íntima) é uma das manifestações clínicas mais comuns na criança com constipação funcional de longa duração e está presente em cerca de 85% dos casos. Esta situação profundamente desagradável é uma causa de grande desconforto social para criança e mesmo para seus familiares. A existência do escape fecal é um importante marcador para estabelecer a gravidade da constipação e também funciona como um bom monitoramento para avaliar a eficácia do tratamento.

A queixa de evacuação dolorosa tem sido considerada um valoroso dado da história clínica como um fator causal do comportamento de retenção das fezes. A presença de um grande bolo fecal palpável na fossa ilíaca esquerda antes da criança ter evacuado, ou até mesmo após uma evacuação que frequentemente obstrui o vaso sanitário, é um sinal marcante da constipação. A evacuação dolorosa dessa massa fecal provoca grande temor na criança e acarreta um desejo de evitar a exoneração fecal posteriormente.

É necessária a obtenção de uma história clínica detalhada do hábito intestinal desde o nascimento, identificar o momento que surgiu o problema, investigar as características das fezes (frequência, consistência, calibre e volume), saber da presença de sintomas associados (dor à evacuação, dor abdominal, presença de sangue nas fezes ou no papel higiênico e escape fecal), comportamento de retenção, problemas urinários e deficiências neurológicas. Em algumas circunstâncias o escape fecal é confundido com diarréia pelos familiares em virtude do seu aspecto ser líquido ou semi-líquido. É importante realizar a inspeção clínica da região perineal e peri-anal para excluir defeitos da medula espinhal. O toque retal deve sempre ser realizado após ter sido obtida a confiança da criança.

Para a caracterização diagnóstica da Constipação Funcional devem ser incluídas 2 ou mais das seguintes manifestações clínicas em uma criança de pelo menos 4 anos de idade:
1. Duas ou menos evacuações por semana.
2. Pelo menos 1 episódio de escape fecal por semana.
3. História de postura de retenção ou retenção consciente excessiva das fezes.
4. História de evacuação dolorosa ou fezes endurecidas.
5. Presença de bolo fecal no reto.
6. História de fezes de grande calibre que obstrui o vaso sanitário.
7. Estas manifestações devem ocorrer pelo menos uma vez por semana durante pelo menos 2 meses antes do diagnóstico.

B.2 Incontinência Fecal Não Retentora

A incontinência fecal não retentora se caracteriza pela evacuação completa do conteúdo do reto em local inapropriado, fora do vaso sanitário, por uma criança acima dos 4 anos de idade e que não apresenta evidências de retenção fecal.

A incontinência fecal tem sido relatada ocorrer em cerca de 3% das consultas da especialidade, sendo a prevalência mais alta nas crianças entre 5 a 6 anos de idade (4,1%) do que nos adolescentes entre 11 e 12 anos (1,6%); além disso tem sido mais freqüentemente descrita entre meninos do que em meninas pertencentes a famílias de nível sócio-econômico mais vulnerável.

Para a caracterização diagnóstica da Incontinência Fecal Não Retentora devem ser incluídas todas as seguintes manifestações nas crianças acima dos 4 anos de idade e que perdurem por pelo menos 2 meses:
1. Evacuação completa em locais inapropriados ao contexto social pelo menos uma vez por mês.
2. Não há evidência de processos inflamatórios, anatômicos metabólicos ou neoplásicos que possam explicar os sintomas.
3. Não há evidência de retenção fecal.
As AFGs continuam a ser um grande dasafio para o clínico, quer seja na compreensão dos mecanismos fisiopatológicos deflagradores dos sinais e sintomas, bem como na própria abordagem terapêutica dos mesmos.Muitas questões referentes aos mecanismos íntimos da fisiopatologia, tais como as interações entre o sistema nervoso central, o sistema nervoso entérico e o sistema imunológico, um melhor conhecimento do comportamento biopsicosocial dos pacientes e eventuais propostas terapêuticas ainda permanecem obscuras. Faz-se necessário, portanto, que esforços sejam concentrados em trabalhos de pesquisa para a aquisição de maiores esclarecimentos a respeito de um problema que afeta um grande número de crianças e adolescentes em todo o universo.

Os Comitês de experts de ambos os grupos etários considerados, – lactentes e pré-escolares – escolares e adolescentes -, conscientes das limitações existentes quanto às deficiências dos conhecimentos acima referidos, fazem recomendações para que os pesquisadores da área realizem pesquisas, cujos desenhos de estudo possam contemplar as lacunas científicas ainda pendentes. Entretanto, a iniciativa de propor uma classificação das AFGs em Pediatria, o que ocorreu pela primeira vez com a elaboração dos critérios de Roma II, e que avançou sobremaneira com os critérios de Roma III, constituiu-se em um passo extremamente importante para estabelecer parâmetros diagnósticos e possivelmente melhores compreensões sobre os seus transtornos fisiopatológicos, até o presente desconhecidos. Esperamos, portanto, com entusiasmo a chegada para dentro em breve dos critérios de Roma IV. Da minha parte, assim que novos conhecimentos cientificamente comprovados e de significativa importância clínica estejam disponíveis na literatura médica, retornarei a discutir este fascinante capítulo da Gastropediatria.