Transtornos da Dor Abdominal Funcional: uma revisão sistemática das definições e seus respectivos desfechos
Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
No número da revista Journal of Pediatrics, de setembro de 2019, está publicado um importante artigo de autoria de Zeevenhooven J e cols., intitulado “Definitions of Pediatric Functional Abdominal Pain Disorders and Outcome Measures: A Systematic Review” que a seguir passo a abordar em seus aspectos de maior relevância.
Introdução
Os transtornos funcionais, relativos aos diversos subtipos de Dor Abdominal (DA) em Pediatria, são queixas altamente frequentes, apresentando uma prevalência geral de 13,5%. De acordo com os critérios pediátricos Roma IV, os transtornos funcionais incluem, a saber: Dispepsia, Síndrome do Intestino Irritável (SII), Enxaqueca abdominal e DA Funcional. Os mecanismos fisiopatológicos das DAs ainda são largamente desconhecidos. A conceitualização está baseada em um modelo biopsicossocial a qual explica as DAs através de uma complexa interação entre subsistemas genéticos, fisiológicos e psicossociais, tais como, eventos da vida pregressa, estresse, traços da personalidade, função imunológica da mucosa alterada e distúrbios da microflora intestinal. O tratamento médico padrão consiste em oferecer educação, reafirmação, recomendação dietética e agentes inespecíficos para reduzir a dor. Entretanto, caso os sintomas persistam, intervenções tanto farmacológicas, psicológicas e/ou dietéticas devem ser consideradas.
A despeito da grande variedade de tratamentos disponíveis, o manejo clínico permanece desafiador, posto que a eficácia dos resultados dos ensaios terapêuticos é inconclusiva e de difícil comparação. Estes fatores podem acarretar um tratamento exagerado e, causar até mesmo, a ruptura da aliança terapêutica entre o clínico e os pacientes e seus familiares, cujo elo representa a pedra angular no manejo da DA. Estudos desenhados para comparar os resultados dos ensaios clínicos, que avaliam diferentes estratégicas terapêuticas nas crianças com DA, encontram inúmeras dificuldades.
O desenvolvimento de um padrão consensual de desfecho para a avaliação das crianças com DA torna-se, portanto, de grande importância. As perspectivas dos pacientes com relação à saúde e suas funções torna-se altamente importante na prática clínica, e, pode melhorar os cuidados centrados no paciente. Idealmente, tal consenso deve ser composto por ambos aspectos, os clinicamente observados e os mensuráveis, bem como os desfechos relatados pelos pacientes, o que, para tanto, é necessário que sejam levadas em consideração as definições de avaliação e os relatos dos desfechos, por meio de uma revisão sistemática da literatura atual. Desta forma, o objetivo do presente estudo foi realizar uma revisão sistemática das definições das DAs e as condutas terapêuticas utilizadas em ensaios randomizados que aderiram às recomendações cientificamente validadas.
Métodos
Estratégia da Pesquisa
Os dados de base Cochrane foram sistematicamente pesquisados com dados inseridos até abril de 2018. Os estudos para serem incluídos deveriam se constituir em uma população de crianças cujas idades deveriam variar de 4 a 18 anos com o diagnóstico de dor abdominal crônica ou recorrente, enxaqueca abdominal, SII e dispepsia funcional, sendo claramente definidas pelos seus autores e o idioma deveria ser escrito em inglês. Foram excluídos os estudos que tiveram incluídos pacientes com causa orgânica das DAs, tais como: Doença inflamatória intestinal e úlcera péptica (Tabela 1).
Resultados
Foram incluídos 4509 pacientes obtidos em 64 publicações. O tamanho médio das amostras foi de 58 com variação de 12 a 316 crianças, e a variação da idade foi 6,3 a 16,3 anos. O sexo feminino foi predominante (n=2771; 65%). Na figura 1 estão descritas todas as intervenções terapêuticas. Em 25 (39%) estudos foi avaliada uma intervenção psicossocial com terapêutica cognitiva comportamental que se revelou o tratamento mais frequente (n=10), uma intervenção dietética foi usada em 25 (39%) estudos, dos quais, 13 deles basearam-se na prescrição de probióticos. Finalmente, 14 (22%) estudos avaliaram uma intervenção farmacológica, dos quais em 4 avaliou-se um agente antiespasmódico.
Os desfechos primários mais relatados foram a intensidade e a frequência da dor, com as seguintes variantes, a saber: intensidade média por dia, diminuição da intensidade da dor, número de episódios diários de dor e número de dias com dor abdominal. Foram utilizados diversos instrumentos para diferentes mensurações pré definidas para os desfechos primários e secundários. Dentre os 165 diferentes métodos investigacionais utilizados, 121 (73%) deles foram validados. Um diário da dor foi utilizado em 28 estudos, sendo que em 23 deles, foi avaliada a frequência da dor, em 13 avaliou-se o absenteísmo escolar e as atividades diárias e, em 5 avaliou-se a duração da dor.
Discussão
O presente estudo demonstra claramente que as intervenções terapêuticas variaram intensamente entre os estudos incluídos, os quais dizem respeito predominantemente às intervenções não farmacológicas. O modelo biopsicossocial como um conceito da fisiopatologia da DA justifica o uso de intervenções não farmacológicas nestes transtornos. Revisões recentes da Cochrane, usando a dor como mensuração primária do desfecho, demostraram uma evidência de qualidade moderada a baixa, como o uso da hipnose ou do tratamento cognitivo comportamental. Evidência de qualidade moderada a baixa foi demonstrado para a eficácia dos probióticos no manejo das crianças com DA. Além disso, a revisão sistemática que avaliou as intervenções farmacológicas não encontrou evidência convincente para apoiar o uso de medicamentos no tratamento das DAs.
Meus Comentários
A queixa de dor abdominal recorrente torna-se em geral um grande desafio para o clínico porque envolve uma enorme série de possibilidades diagnósticas, e, entre elas principalmente discernir com precisão entre uma enfermidade de origem orgânica ou um transtorno funcional. Neste sentido é de fundamental importância obter-se uma anamnese extremamente detalhada, na busca de uma orientação para conduzir potenciais investigações laboratoriais, para se alcançar o diagnóstico definitivo, e, daí então, optar por qual a melhor conduta a ser seguida.
Especificamente deve-se buscar na história do paciente algumas características da dor quanto a intensidade, duração, horário de aparecimento, frequência no dia e/ou na semana, local no abdome ou se ocorre algum tipo de irradiação para algum outro órgão, se a dor é incapacitante ou não, se desperta o paciente durante o sono, qual a relação com a alimentação (antes, durante ou depois) e com a atividade física. É necessário também obter informação a respeito de algum evento marcante na vida do paciente, tal como a perda de algum ente querido, separação dos pais, problemas na escola, relacionamento com colegas e amigos. É também de fundamental importância a análise do gráfico de crescimento pondero-estatural para avaliar se a dor está relacionada à perda de peso e/ou parada no ritmo de crescimento. A partir da obtenção deste volume de informações o clínico poderá aventar algumas hipóteses diagnósticas antes de proceder ao exame físico, posto que este exame, salvo alguma evidência de característica estigmatizante, em geral, pouca ajuda adicional irá fornecer para se firmar um diagnóstico definitivo.
Uma vez tendo todas estas informações disponíveis, passa-se a pensar quais exames subsidiários seriam pertinentes para serem solicitados, e isto, é claro irá depender de cada caso a critério do discernimento do clínico assistente, porque a gama de possibilidades de investigação é extensa, desde testes simples não invasivos até os métodos mais sofisticados que estão presentes no nosso arsenal de investigação diagnóstica.
Como se depreende é uma árdua tarefa que se nos apresenta mas vale a pena enfrenta-la, mesmo sabendo que nem sempre é possível obter-se o sucesso almejado, para o bem do paciente e para a grande satisfação do clínico, por saber que bem cumpriu seu desafio.
Referências Bibliográficas
- Zeevenhooven J e cols. Journal of Pediatrics 2019; 2012:52-59.
- Kapadaia MZ e cols. Pediatrics 2016; 138:967.
- Lacy BE e cols. Gastroenterology 2016; 150:1393-1407.
- Kuizenga WS e cols. JPGN 2016; 62: 840-6.