A utilização do amido na alimentação do lactente: uma perspectiva histórica e onde nos encontramos na atualidade
Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Introdução
No início do século XIX, a maioria dos países continentais europeus, encontravam-se sob a liderança e o comando de Napoleão Bonaparte. A França e metade da Alemanha, faziam parte de uma nova estrutura geopolítica denominada “Rheinbund”. Nesta ocasião Napoleão planejava invadir o Reino Unido, mas após haver perdido a Batalha de Trafalgar, em 1805, ele desistiu desse plano. Em contrapartida, Napoleão declarou um bloqueio continental em seu “Berlim decree” em 1806, contra a importação de quaisquer produtos ingleses, e ao mesmo tempo isolou o Reino Unido por meio de um enorme bloqueio econômico. A escassez alcançou a negociação de muitos produtos, um dos quais foi a cana-de-açúcar. O preço do açúcar tornou-se muito elevado e isso acarretou a busca em toda a Europa por fontes alternativas deste produto. A partir desta grande dificuldade foram propostas algumas alternativas para solucionar o problema, o que deu origem a duas estratégias que se tornaram exitosas: a primeira delas foi a busca de plantas alternativas que contivessem açúcar e, a segunda, foi a tentativa de se provocar a quebra do amido para a obtenção do açúcar. Considerando-se a primeira estratégia investigadores conseguiram converter o açúcar da beterraba em produção industrial. Em 1747, o químico alemão Andreas Marggraf, em Berlim, havia descoberto que a beterraba continha um elevado teor de açúcar. Seu sucessor, Franz Achard, converteu este conceito em produção industrial de açúcar a partir da beterraba. Ele conseguiu convencer o rei Wilhelm III para financiar seu projeto de construção da primeira fábrica na Prússia, na qual o açúcar passou a ser produzido a partir da beterraba. Em 1802, os primeiros produtos foram disponibilizados para o consumo, porém, esta estratégia não reverteu a escassez de açúcar no país.
A segunda estratégia foi a busca pela obtenção de açúcar em outras fontes, isto é, por meio de um tratamento químico ou enzimático do amido. O farmacêutico alemão Konstantin Kirchhoff, trabalhando em São Petersburgo, descobriu que a hidrólise ácida do amido, produzia açúcar por meio do uso de ácido sulfúrico diluído. Esse método foi descrito em detalhes em agosto de 1811, e era capaz de a partir de 45kg de batata produzir 22kg de xarope e 9kg de açúcar sólido. A sua publicação ganhou grande reconhecimento público na Europa e a indústria açucareira adotou seu método.
Anselmo Payen, um químico francês, descobriu em 1833 uma substância que era capaz de converter o amido em glicose a partir de um extrato de malte, o qual ele denominou diastase. Ele denominou diastase porque ele pensou que o açúcar poderia ser produzido a partir do amido. Entretanto, mais tarde soube-se que a diastase, na realidade, era a alfa-amilase, a qual se tornou a primeira enzima e a primeira maltase descoberta pela ciência. Posteriormente, Payen tornou-se mundialmente famoso por ter descoberto a celulose.
O nome enzima foi cunhado em 1876, pelo fisiologista alemão Frederic Kuhne, que havia descoberto a enzima tripsina presente na secreção pancreática.
Ambas as estratégias, ou seja, a hidrolise ácida do amido e a digestão enzimática do amido, tornaram-se a base tecnológica da indústria do amido nos séculos XX e XXI. A extração do açúcar pelo açúcar da beterraba, permitiu que a Europa se tornasse independente da importação da cana de açúcar.
O emprego do amido na alimentação do lactente, somente passou a ter uma proporção significativa, nos últimos anos do século XVIII, posto que até aquela data, o aleitamento natural era a opção salva-vidas dos lactentes. Foi a partir desta época que um alimento denominado “panada”, foi primeiramente mencionado no contexto da “ama seca”. Nesta mesma época, uma outra opção foi a utilização de leite de vaca diluído em uma solução de cevada, e aquecida. Foi então que já neste momento histórico, foi conhecido que o amido possuía uma afinidade pela água, e que, quando aquecido com agitação, sofria um inchaço irreversível, agindo como um espessante para um determinado líquido.
Alternativas para a alimentação do lactente não sofreram um progresso significativo até quando surgiram os primeiros relatos comparando a composição do leite de vaca com o leite humano, o que ocorreu em meados do século XIX. Estes relatos, mostraram que comparado ao leite humano, o leite de vaca possuía um teor mais alto de proteína, porém, teores mais baixos de lactose e gordura. Estes achados, determinaram as primeiras recomendações a respeito da modificação do uso do leite de vaca para lactentes humanos.
Os antigos fabricantes de alimentos para lactentes com adição de amido (1867-1920)
Os conhecimentos das diferenças comparativas entre o leite humano e o leite de vaca, acarretaram na proposição de diluir o leite de vaca com água para diminuir a concentração proteica e a adição de açúcar e creme, para aumentar o conteúdo de lactose e gordura e, com isso, se aproximar da composição do leite humano. Estas propostas levaram ao desenvolvimento de um número incontável de empresas de alimentos para lactentes, mas a primeira da qual se tem notícia foi a Liebig‘s Food, na Alemanha, em 1867, e imediatamente seguida, no mesmo ano, pela Nestle’s Food, na Suíça. O amido de ambos os produtos foi a farinha de trigo. Estes produtos das empresas alimentícias eram vendidos em farmácias e eram planejados para serem utilizados sob prescrição médica (Tabela 1).
Por outro lado, pode-se argumentar que a esterilização e a modificação do leite de vaca para a utilização dos lactentes, e a preocupação com a mortalidade infantil associada com a alimentação artificial, tornou-se um motivo de sustentação para o surgimento de uma nova subespecialidade, a Pediatria.
Todos esses alimentos para lactentes continham uma fonte adicional de amido, desde grãos de cereais ou mesmo o carboidrato do malte. Havia inúmeras razões para justificar a adição do amido como uma fonte adicional de calorias fornecida pelo carboidrato. Naquela época pensava-se que a adição de amido prevenia a formação de grandes coágulos de caseína e que também a fórmula espessada diminuiria a quantidade de regurgitação. Além disso, o amido era mais barato que a lactose. Vários tipos de amido eram utilizados, a saber: cevada, milho, trigo, aveia e farinha de arroz. De acordo com alguns profissionais a cevada era preferida porque ela produzia uma cobertura protetora das membranas da mucosa intestinal. Naquela época já se sabia que o amido, proveniente dos grãos dos cereais, era difícil de ser digerido e, portanto, requeria uma moagem intensa e um cozimento extensivo. O efeito desde procedimento, resultava em um aumento da viscosidade e a tendência de formação de um gel, ambos produtos resultavam na elaboração de uma textura indesejável que limitava a aceitabilidade do lactente. Estes inconvenientes desagradáveis levaram os fabricantes a desenvolver esforços para utilizar amidos modificados, pois eles apresentavam a vantagem adicional de serem estabilizantes eficazes, necessários para manterem em suspensão finas partículas de alimentos. Desta forma, amidos nativos passaram a ser convertidos de dextrina a maltose e dextrose durante o processo digestivo. Consequentemente, a maltodextrina tornou-se um dos primeiros amidos modificados disponíveis.
Em 1873, havia pelo menos 27 empresas de alimentos, com amido adicionado para lactentes, patenteadas nos EUA disponíveis no mercado (Figuras 1-2-3).
Amido modificado na alimentação para o lactente nas fórmulas pré-industrializadas: 1915-1950
Em 1912, Mead Johnson, produziu o primeiro mais importante produto de alimentação para o lactente comercialmente disponível, um amido modificado, a Dextri Maltose. Este produto, um carboidrato em pó solúvel obtido da hidrólise parcial do amido da batata tornou-se disponível para ser adicionado ao leite de vaca (Figura 4).
Em 1915, a Dextri Maltose tornou-se o carboidrato predominantemente utilizado pelas empresas de alimentação para o lactente, obtida naquela ocasião do xarope de milho, devido a indisponibilidade do amido da batata alemã, em virtude da eclosão da Primeira Guerra Mundial (1914-18).
A primeira fórmula “moderna” baseada em calorias foi desenvolvida entre 1915-1919, a qual fornecia 67kcal/dl elaborada com leite de vaca desnatado e lactose, óleo animal e óleos vegetais. Este produto foi comercializado como um leite sintético adaptado (SMA) e foi considerado o precursor de todas as fórmulas modernas.
Uso de amidos modificados nos alimentos “industrializados” para o lactente: 1940 até o presente momento.
A adição de amido e amidos modificados foram importantes para o desenvolvimento da indústria de alimentos processados, especialmente na produção de purê de frutas e vegetais. O primeiro alimento industrializado moderno foi um biscoito, baseado em trigo fortificado com vitaminas e minerais, desenvolvido por pesquisadores da universidade de Toronto, em 1930. Esse biscoito foi subsequentemente comercializado na forma de cereal denominado Pablum pela Mead Johnson (Figura 5).
Este foi o primeiro cereal pré-cozido instantâneo para o lactente, fortificado com vitaminas e minerais (Fe, Ca, P, Zn e vitaminas do complexo B), produzido nos EUA, e que continha uma mistura de trigo, aveia, germe de trigo, milho e folha de alfafa. Foi um alimento revolucionário para aquela época e obteve um grande sucesso entre as mães.
A introdução de Pablum coincidiu com a sugestão de Marriot, prestigioso pediatra americano, em 1935, que “iniciando-se entre o 5º e 6º mês de vida era a idade apropriada para introdução de alimentos sólidos na dieta dos lactentes, incluindo cereais e purê de vegetais”. Em 1937, a Associação Médica Americana afirmou que os pediatras eram favoráveis a introdução de alimentos tais como frutas e vegetais, entre o 4º e 6º meses de vida. As recomendações para a introdução precoce de frutas e vegetais criaram um imediato mercado para a produção de alimentos com amidos modificados para os lactentes. A indústria encontrava-se pronta para atender essa necessidade, a qual incluiu o uso de amidos modificados na preparação dos alimentos para os lactentes. Esses alimentos foram prontamente aceitos pelas mães pois compensavam a inconveniência da sua elaboração doméstica, e que também incluía o cozimento, a formação do purê, o esforço para a elaboração do purê, e a preservação. A disponibilidade de tais produtos também causou impacto sobre os Pediatras, pois uma pesquisa realizada em 1954 revelou que 66% dos Pediatras rotineiramente recomendavam a introdução de alimentos sólidos antes dos 2 meses e 88% a partir dos 3 meses de idade. De fato, o Comitê de Nutrição da Academia Americana de Pediatria afirmou, em 1958, o seguinte:
“Baseado nos conhecimentos atuais, o Comitê está de acordo que a introdução de alimentos sólidos na dieta dos lactentes antes dos 2 ou 3 meses de idade, não resulta em qualquer superioridade nutricional ou benefício psicológico…alimentos sólidos contendo Ferro devem ser introduzidos durante o terceiro mês de vida.”
A adição de amidos modificados, em oposição aos amidos nativos nos alimentos para os lactentes, apresentava outras vantagens, pois eles oferecem uma textura de consistência que agrada a sensação na boca, o que os produtores acreditavam ser um atributo desejável destes alimentos. Esses amidos modificados eram estáveis ao frio e resistiam à separação da água com o amido, propriedades importantes pois as porções não utilizadas desses alimentos poderiam ser estocadas na geladeira.
Em 1962, verificou-se que já mesmo nos primeiros meses de vida os lactentes eram alimentados majoritariamente com cereais processados e alimentos macerados que continham concentrações não somente significativas de amidos modificados, como também, quantidades adicionais de sal e açúcar. O relatório concluiu que os lactentes estavam “aclimatados” ao “sabor dos alimentos enlatados” e outros sabores industrializados, quase que desde o momento do nascimento. Verificou-se que 65% dos preparados comerciais para lactentes continham um ou mais de 6 a 8 amidos modificados. Estes alimentos continham ingredientes do amido que incluíam farinha de tapioca, trigo, aveia, arroz e batata.
Um relatório realizado posteriormente verificou que, amidos modificados presentes nos alimentos dos lactentes, podiam suprir de 10 a 32% da energia total, e que potes individuais poderiam conter entre 9,5g e 15,5g de amido modificado.
O conhecimento público e o impacto negativo sobre o uso de amido modificado nos alimentos dos lactentes
Como resultado da revolução social dos anos 1960 e o crescimento da falta de confiança da opinião pública em relação às instituições governamentais, ocorreu um aumento do conhecimento dos consumidores e do exame minucioso dos meios de comunicação sobre a indústria alimentícia incluindo os alimentos para lactentes. Uma comissão do senado americano, constituída em 1969, mostrou-se altamente crítica em relação a indústria alimentícia para lactentes. Um dos membros dessa comissão chegou a afirmar: “Açúcar e amidos modificados são enchimentos baratos, menos dispendiosos do que frutas, vegetais ou carne e, que ocupam um espaço, porém, de baixo valor nutricional nos alimentos para lactentes”. Por outro lado, o Conselho Nacional de Pesquisa considerou que alimentos para lactentes contendo amidos modificados, não apresentavam bases toxicológicas para excluir o uso destes alimentos contendo amido modificado na dieta de lactentes. O conteúdo deste relatório foi confirmado em 1977, pela Academia Americana de Pediatria, que concluiu que na média, amidos modificados adicionam cerca de 20kg/kcal em cada 140g de alimento para lactente. Em 1975, o Centro de Ciência em Interesse Público, requereu que as companhias de alimentos para lactentes removessem açúcar, sal e amidos modificados nos seus produtos. O relatório notou que alimentos contendo amidos modificados poderiam compreender em até ¼ do total sólido em alguns produtos. Em 1986, alimentos para lactentes sofreram uma considerável melhoria em virtude da diminuição das quantidades de amidos modificados, como os documentados em um levantamento publicado pela Gerber entre lactentes de 2 a 12 meses. Esta companhia eliminou a adição de açúcar, sal e amidos modificados na maioria dos seus produtos.
Aonde nos encontramos atualmente?
O interesse público nos dias atuais continua a enfatizar a preferência por produtos alimentícios naturais com um aumento da utilização de alimentos para lactentes preferentemente “orgânicos” e “naturais”. Uma revisão das etiquetas das frutas e vegetais comercializados para lactentes não indicam que amidos modificados tenham sido adicionados. No que diz respeito às refeições sólidas, amidos modificados (dextrino-maltose, milho, tapioca) estão ainda indicados nas etiquetas, porém em concentrações reduzidas. Está claro que nos dias atuais o uso de amidos modificados, nos alimentos complementares para lactentes, tem sido significativamente reduzido e que, portanto, esta questão atualmente já não mais se constitui em uma preocupação para a opinião pública.
Meus Comentários
Vale enfatizar que o aleitamento natural exclusivo até o sexto mês de vida é a recomendação que eu adoto, e a partir dos seis meses iniciar a dieta sólida que deve ser a da “panela da família”.
Caso seja desejo da mãe de continuar o aleitamento natural associado à dieta sólida este procedimento é altamente recomendável, pelo menos até o fim do primeiro ano de vida. Como se pode depreender dos textos acima a sociedade ocidental até fins do século XIX mantinha o aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado. A grande mudança ocorreu quando se passou a utilizar leite de vaca na dieta do lactente e na tentativa de simular a constituição do leite de vaca ao leite humano. Durante praticamente os primeiros 60 anos do século XX que ocorreram as grandes propostas de mudança na prática alimentar dos lactentes, com a baixa prevalência do aleitamento natural e a introdução precoce de dietas sólidas. Foi a observação de que esta prática produzia mais malefícios, inclusive com aumento da mortalidade infantil que levou a Organização Mundial de Saúde, em meados dos anos 1970, a fazer uma grande campanha de estímulo ao aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, o que tem proporcionado uma melhoria indiscutível nas condições de saúde dos nossos lactentes.
Referências Bibliográficas
- The History of Maltose-active Disaccharidases – Michael J. Lentze JPGN 66: Supplement 3, S4, 2018
- Use of Starch and Modified Starches in Infant Feeding: A Historical Perspective – Frank R. Greer JPGN 66: Supplement 3, S30, 2018