Proctocolite Alérgica uma enfermidade em franca ascensão: manifestações clínicas e tratamento
Prof. Ulysses Fagundes Neto
Introdução
Proctocolite alérgica (PA) é um tipo de alergia alimentar que pertence ao grupo das hipersensibilidades não mediadas por IgE, também denominada Proctocolite eosinofílica (1). Os sintomas geralmente se apresentam nos primeiros três meses de vida, mais raramente em idades posteriores, cuja manifestação clínica principal se caracteriza pela presença de sangue “vivo” nas fezes (hematoquezia), a qual pode ser nitidamente visível ou detectada por reação imunocromatográfica (Figura 1).
Admite-se que os principais fatores de risco da PA se devem à imaturidade dos sistemas imunológicos inatos e adaptativos, observados nos primeiros meses da vida, alteração da barreira de permeabilidade intestinal e suscetibilidade genética, em combinação com alimentos sensibilizadores (2).
A PA é caracterizada por uma inflamação do sigmoide distal e do reto a qual acarreta edema e erosão da mucosa (Figura 2).
A análise histológica revela infiltrado inflamatório eosinofílico no epitélio e na lâmina própria, inclusive podendo ser observado abscesso críptico nas glândulas crípticas (Figura 3).
A ocorrência de hiperplasia nodular linfoide é também outro achado que pode ser observado macroscopicamente e à microscopia óptica comum (Figuras 4-5) (3).
O mecanismo fisiopatológico da PA ainda não foi totalmente identificado, porém, sabe-se que envolve a presença de linfócitos CD8, bem como linfócitos do tipo TH-2 e infiltrado eosinofílico em todas as camadas da mucosa colônica. Além disso, a presença de células de memória circulantes, reveladas por testes positivos de transformação linfocítica sugere o envolvimento de células T na patogênese da PA, associada à secreção de fator de necrose tumoral alfa pelos linfócitos ativados.
A proteína do leite de vaca ou de outros mamíferos é o principal fator causal da enfermidade, porém, outros alimentos alergênicos podem também estar envolvidos na sua gênese, tais como, a soja, trigo, ovo, peixe e frutos do mar, as oleaginosas e o coco.
Naqueles lactentes que se encontram em aleitamento natural exclusivo admite-se que a passagem destes alérgenos para o leite materno seja responsável por induzir uma resposta inflamatória e, consequentemente, pelo desencadeamento das manifestações clínicas.
Além da hematoquezia outras manifestações clínicas também podem estar presentes, tais como: diarreia, cólicas, irritabilidade intensa, regurgitações frequentes, vômitos e dificuldade para amamentar. Vale ressaltar que a PA se trata de uma enfermidade transitória que na maioria dos casos é resolvida espontaneamente ao redor do primeiro ano de vida (4).
O presente trabalho tem por objetivos descrever as principais manifestações clínicas e os tratamentos instituídos em um grupo de lactentes portadores de PA, bem como suas respectivas evoluções clínicas até a cura do processo alérgico.
Pacientes e Métodos
O presente estudo consistiu na inclusão de 69 pacientes de ambos os sexos (35 feminino 50,7% e 34 masculino 49,3%), de forma prospectiva e consecutiva, entre janeiro de 2018 e dezembro de 2019, com queixa principal de hematoquezia e diagnóstico de PA. Todos os pacientes foram atendidos pelo profissional médico UFN, no Instituto de Gastroenterologia Pediátrica de São Paulo (IGASTROPED).
Foram obtidas as seguintes informações de todos os pacientes: tempo de gestação, tipo de parto, sexo, peso de nascimento, idade da primeira consulta, idade do início dos sintomas, tipo de dieta, intolerâncias alimentares, evolução clínica, tratamento e desencadeamento alimentar.
Pacientes portadores de anomalias congênitas ou outras causas de sangramento retal, como por exemplo, infecção, fissura anal, enterocolite necrozante, doença inflamatória intestinal, defeitos da coagulação, divertículo de Meckel, vólvulo, invaginação, foram excluídos da análise.
Critérios Diagnósticos
Foram utilizados os critérios propostos por Walker-Smith (5), a saber:
- Presença de sangue vivo nas fezes.
- Exclusão de causas infecciosas e parasitárias de colite.
- Desaparecimento dos sintomas após a eliminação do supostos alérgenos da dieta do lactente ou da mãe.
- Desencadeamento precoce não é necessário na rotina, deve ser tentado aos 12 meses, quando provavelmente o lactente tenha se tornado tolerante aos alérgenos.
Colonoscopia e Histologia
Este procedimento não é necessário na rotina diagnóstica da PA na prática diária, porém, em alguns pacientes, quando os sintomas apresentavam dúvidas quanto à certeza diagnóstica, como por exemplo sangramento abundante, o estudo endoscópico com biópsia foi realizado.
Conduta Dietética
Para aqueles lactentes que estavam recebendo Aleitamento Natural (AN) exclusivo ou misto foi recomendada a dieta de exclusão dos 7 alimentos para a lactante, a saber: leite e derivados, soja, trigo, ovo, peixe e frutos do mar, as oleaginosas e o coco. Os lactentes passaram a ser monitorados quanto a possíveis manifestações de intolerância alimentar e as mães foram instruídas a elaborar um diário alimentar, anotando imediatamente, após cada refeição todos os alimentos ingeridos, para evitar possíveis esquecimentos posteriores. No caso de haver manifestações de intolerância (hematoquezia) mesmo estando a mãe em regime de exclusão comprovada foi indicada, de comum acordo com a mãe, a introdução de uma fórmula hipoalergênica podendo ser Hidrolisado Proteico extensamente hidrolisado (HP) ou Mistura de Amino-Ácidos (AA) a critério da preferência materna. Caso o lactente apresentasse sintomas de intolerância à fórmula de HP, esta era substituída pela fórmula de AA.
A partir dos 6 meses de idade os lactentes passaram a receber dieta sólida complementar constando de arroz, carne de frango e azeite de oliva. Caso houvesse plena aceitação desta dieta, após 15 dias de sua utilização, passou-se a introduzir outros alimentos de acordo com a cultura alimentar de cada família, entretanto, sempre preservando as restrições dietéticas quanto aos 7 alimentos considerados potencialmente alergênicos.
A partir dos 12 meses procedeu-se o teste de desencadeamento com fórmula láctea apropriada para a idade do lactente. Inicialmente era oferecida uma quantidade não superior a 20 ml da fórmula, e aguardava-se pelo menos 40 minutos para observar o surgimento de uma possível manifestação adversa de intolerância. A partir de então, caso não fosse observada qualquer reação adversa, o lactente estava liberado para se alimentar sem restrições, pois considerava-se que estava curado da PA.
Resultados
Os 69 pacientes encontravam-se em bom estado geral, apesar de apresentarem a queixa de hematoquezia. Além da queixa principal a grande maioria dos pacientes (81,2%) apresentava queixas secundárias variáveis de diferentes graus de intensidade, tais como: irritabilidade frequente principalmente no momento da amamentação,
regurgitações, cólicas, vômitos e dermatite seborreica.
A Tabela 1 apresenta os dados clínicos do tempo de gestação, tipo de parto e peso de nascimento dos pacientes.
A Tabela 2 apresenta a idade do início dos sintomas, da primeira consulta e o respectivo estado nutricional dos pacientes
A Tabela 3 descreve os tipos de dieta que os pacientes estavam recebendo quando da primeira consulta
Com relação ao tratamento inicial 37 (53,6%) lactentes foram mantidos em AN exclusivo, com a eliminação dos 7 alimentos alergênicos da dieta materna, 8 (11,6%) AN + HP; 6 (8,7%) AN + AA; 7 (10,2%) HP e 11 (15,9%) AA.
Durante a evolução clínica 16 (23,2%) lactentes desenvolveram intolerância ao HP e passaram a receber AA, e, a partir desta conduta houve desaparecimento dos sintomas de PA.
A dieta sólida foi bem tolerada por todos os lactentes e ao cabo dos 12 meses apena 3 pacientes ainda apresentaram sinais de intolerância ao teste de provocação, nenhum deles com maior gravidade, a qual desapareceu respectivamente aos 15,5, 18 e 19 meses.
Naqueles pacientes que foram submetidos à colonoscopia com biópsia retal, a macroscopia evidenciou uma mucosa friável com hiperemia e em algumas ocasiões discretas ulcerações aftosas (Figuras 6-7).
A microscopia revelou aumento do infiltrado inflamatório da lâmina própria, aumento dos eosinófilos na lâmina própria, permeando as glândulas crípticas, e, também, no epitélio da mucosa retal (Figuras 8-9).
Discussão
PA é uma entidade clínica caracterizada por alterações inflamatórias microscópicas e/ou macroscópicas no cólon e reto como consequência de reações imunológicas devido à ingestão de proteínas estranhas, que são denominadas para efeito clínico de alergenos. Deve-se sempre ter como conceito fundamental que alergia se desenvolve a partir de uma reação imunológica e que diz respeito ao envolvimento de alguma proteína, e, no caso da alergia alimentar este componente proteico está presente na dieta da criança. Vale ressaltar que PA é uma enfermidade que afeta essencialmente o lactente no seu primeiro ano de vida, mais preferentemente nos primeiros 6 meses de idade, muito embora excepcionalmente haja relatos de casos em crianças maiores. Trata-se de uma enfermidade de caráter temporário com resolução espontânea ao final do primeiro ou segundo anos de vida.
Na nossa experiência pessoal, em 1987, ao analisarmos 55 lactentes com idade média de 3,9 meses, durante um período de 5 anos, os quais apresentavam alergia à proteína do leite de vaca (APLV) e à soja. Naquela experiência PA representava 20% dos casos de alergia alimentar, mas tudo indica que este percentual vem aumentando de forma considerável (6) (Figuras 10–11-12-13-14-15-16-17-18).
Muito embora colite por infecção bacteriana ou protozoária possa provocar sangramento retal trata-se de uma etiologia rara neste período da vida em condições ambientais higiênicas apropriadas. Fissura anal é também frequentemente causa de sangramento retal, porém a característica do sangramento nesta condição clínica difere totalmente da colite. O sangramento característico da fissura anal é um fio de linha de sangue rutilante que recobre as fezes, posto que a fissura é uma lesão anal praticamente externa, ao passo que no sangramento devido à PA, o sangue é visto misturado às fezes.
Até meados do século XX, nas mais diversas formas de sociedade e cultura existentes, salvo raríssimas exceções, as crianças eram rotineiramente amamentadas ao seio materno de forma exclusiva e por tempo prolongado. Entretanto, as mudanças iniciadas em meados do século XIX ocasionadas pelo desenvolvimento tecnológico industrial, entre as sociedades ditas “modernas”, nas quais as mulheres passaram a ocupar um espaço significativo no mercado de trabalho, levaram a uma drástica redução da prática do aleitamento materno.
Em virtude destas mudanças culturais, leites de outros mamíferos passaram a ser introduzidos em idades cada vez mais precoces na alimentação dos lactentes. A partir desta mudança nos hábitos alimentares começaram a surgir os efeitos colaterais desta prática nutricional, em especial, as alergias alimentares.
Deve-se a Von Pirquet, em 1906, a introdução do conceito de alergia. Em 1916, foi feita a primeira referência de APLV nos Estados Unidos. Em 1929, passaram a surgir as fórmulas de soja industrialmente preparadas. Em 1940, apareceu o primeiro preparado de hidrolisado da caseína extensamente hidrolisado, denominado Nutramigen. No fim do século xx passaram a ser elaboradas as fórmulas à base de mistura de amino-ácidos.
Em 1952, Daniel Darrow descreveu o primeiro caso de APLV como complicação de um episódio de gastroenterite. Este paciente portador de diarreia aguda foi realimentado com leite de vaca e apresentou um agravo do quadro diarreico com perda de peso. Foi, então, introduzida uma fórmula à base de hidrolisado proteico (Nutramigen), que fez cessar os sintomas e houve recuperação nutricional. Uma enfermeira, entretanto, inadvertidamente reintroduziu leite de vaca na dieta do paciente, e este voltou a apresentar diarreia com perda de peso, cujos sintomas foram revertidos com a reintrodução do hidrolisado proteico. Na realidade, involuntariamente foi realizado um teste de provocação positivo para APLV.
Rubin (7), nos EUA, em 1940, publicou suas observações sobre 4 pacientes, com idades compreendidas entre 4 e 7 semanas, que foram alimentados com leite de vaca, os quais apresentaram diarreia sanguinolenta e cólicas intensas, denominando-as portadoras da “Síndrome do Sangramento Intestinal devido a APLV”. Mortimer (8), nos EUA, em 1959, por sua vez descreveu o caso de um lactente de 3 meses, que se encontrava em aleitamento misto, possuía história de alergia familiar fortemente positiva, e que desenvolveu quadro clínico de eczema e asma. Foi tratado com fórmula de soja em substituição à fórmula láctea durante 2 meses, período no qual apresentou vômitos frequentes e reinício das crises asmáticas, manifestações estas que desapareceram com a introdução de uma fórmula à base de hidrolisado proteico. Halpin e cols. (9), nos EUA, em 1977, documentaram a primeira descrição de PA em 4 lactentes com idades entre 2 e 4 meses, os quais apresentavam diarreia sanguinolenta, perda de peso e vômitos com o emprego de fórmula de soja com diagnóstico prévio de APLV. Nos 4 pacientes foi realizado desencadeamento com fórmula de soja e os sintomas reapareceram, sendo que anteriormente os sintomas haviam regredido com o uso de uma fórmula à base de hidrolisado proteico extensamente hidrolisado.
Lake e cols. (10), nos EUA, em 1982, descreveram 6 lactentes amamentados exclusivamente com leite materno que apresentaram diarreia sanguinolenta no primeiro mês de vida, tendo sido descartadas causas infecciosas. Foi constatado, nesta ocasião, que proteínas estranhas, potencialmente alergênicas, podem ser veiculadas pelo leite materno, e que os sintomas regridem quando o suposto alergeno é retirado da dieta da mãe. Além disso, Sherman e Cox (11), nos EUA, em 1982, levantaram a possibilidade de sensibilização intra-útero às proteínas do leite de vaca, ao descrever o caso de um recém-nascido que apresentou diarreia sanguinolenta algumas horas após o nascimento ao receber leite de vaca a partir de 8 horas de vida. As manifestações clínicas persistiram ao se introduzir fórmula de soja, e somente regrediram com o uso de fórmula à base de hidrolisado proteico extensamente hidrolisado.
No presente trabalho ficou evidenciada a importância da elevada prevalência de PA como a principal manifestação de alergia alimentar, posto que, desde o início dos anos 1990, não temos mais observado casos de alergia alimentar com manifestação de diarreia crônica associada a desnutrição.
Referências Bibliográficas
- Buyuktiryaki B – JPGN 2020; 70:574-79.
- Meyer R – Allergy 2020;75:14-32
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- Camargo LS e Fagundes-Neto U – Arquivos de Gastroenterologia 2016;53:262-66.
- Walker-Smith JA – Clin Exp Allergy 1995; 25:20-22
- Fagundes-Neto U – Rev Paul Med 1987; 105:166-71.
- Powell, G. K. e cols., J Pediatr 1978; 93: 553-60.
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- Lake, A. M. e cols., J Pediatr 1982; 101: 906-10.
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