Doença do Refluxo Gastroesofágico: uma atualização da apresentação, prevalência, fisiopatologia, diagnóstico e tratamento – Parte 1
Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
Parte 1: Apresentação e Epidemiologia
Introdução
A Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE) foi definida, por consenso, como um fluxo retrógrado desprovido de esforço, do conteúdo gástrico para o esôfago ou para a boca, causando sintomas desagradáveis e/ou complicações. A DRGE se tornou extremamente comum, atualmente considerada como o diagnóstico gastrointestinal mais frequente no mundo ocidental. Muito embora as complicações, tais como, sangramento devido a esofagite erosiva ou estenose péptica, tenham se tornado menos prevalentes, os pacientes portadores dos sintomas da DRGE apresentam um comprometimento na sua qualidade de vida, semelhante a aqueles pacientes portadores de Doença Inflamatória Intestinal (DII). Para se estabelecer com acurácia o diagnóstico da DRGE, para se propor seu respectivo tratamento, é importante reconhecer as diversas gamas dos sintomas apresentados, sua relativa probabilidade de ser um verdadeiro refluxo patológico, e, ao mesmo tempo, sua potencial sobreposição com outros transtornos gastrointestinais.
Manifestações Clínicas
Os sintomas clássicos da DRGE são: queimação retroesternal e regurgitação ácida. Os pacientes geralmente relatam uma sensação de queimação na área retroesternal, elevando-se até o tórax e com irradiação para o pescoço, a garganta e ocasionalmente para as costas. Essa queixa ocorre após as refeições, particularmente depois de lautas comidas gordurosas ou a ingestão de alimentos picantes, produtos cítricos, gorduras, chocolates ou álcool. A posição supina ou inclinada sobre as pernas pode exacerbar a queimação retroesternal. A queimação retroesternal noturna pode causar dificuldades ao sono e comprometer as funções do dia seguinte. A deprivação do sono bem como o estresse psicossocial podem diminuir o limiar de percepção dos sintomas. A DRGE pode ser diagnosticada tomando-se em conta os sintomas, tais como a ocorrência de queimação retroesternal com frequência de duas ou mais vezes na semana, e, mesmo nos casos em que os sintomas sejam menos frequentes, mas se eles forem suficientemente comprometedores e apresentarem efeitos adversos ao bem-estar. A frequência e a gravidade dos sintomas não estão necessariamente associadas com o grau de lesão esofágica.
Sintomas menos comuns da DRGE incluem disfagia, dor torácica, odinofagia, eructações, soluços, náuseas e vômitos. A disfagia é considerada um sinal de alarme nos pacientes com DRGE, que pode justificar a realização de Endoscopia Digestiva Alta. A disfagia usualmente ocorre nos pacientes que apresentam queimação retroesternal de longa duração associada com uma pequena, porém progressiva disfagia para alimentos sólidos. As causas mais comuns de disfagia são devidas a estenose péptica ou inflamação grave, porém a disfagia pode ser o primeiro sintoma do esôfago de Barret. A dor torácica associada com a DRGE pode ser indistinguível daquela dor causada por isquemia cardíaca. A DRGE é causa mais frequente de dor torácica não cardíaca do que os transtornos motores esofágicos. Os sintomas mais problemáticos e controversos associados à DRGE são tosse crônica, laringite crônica (incluindo rouquidão e sensação de globos) e asma.
Alguns pacientes com DRGE são assintomáticos, e este fato é particularmente verdadeiro em pacientes idosos, talvez em decorrência da acidez diminuída do material refluído ou por uma diminuição da percepção da dor. Muitos pacientes idosos apresentam como primeiro sintoma as complicações da DRGE, em virtude do longo tempo de duração da mesma com sintomas mínimos. Isto é um problema particular para os pacientes com esôfago de Barret.
Sobreposição com outros transtornos
Os sintomas da DRGE podem se sobrepor com aqueles de outras síndromes, o que pode ser causa de uma dificuldade no diagnóstico, e, consequentemente, podem alterar os tratamentos clínico e/ou cirúrgico.
1) Esofagite Eosinofílica (EEo)
O questionamento de como diferenciar a EEo da DRGE tem provocado confusões nos clínicos e pesquisadores, desde que a EEo foi reconhecida como uma enfermidade independente. Este dilema diagnóstico se iniciou a partir de um estudo histopatológico em pacientes pediátricos em 1982, no qual se encontraram eosinófilos no epitélio escamoso do esôfago, os quais poderiam ser uma manifestação da DRGE, documentados por testes de pHmetria. Os patologistas rapidamente aceitaram o conceito, e, tornou-se comum na prática clínica atribuir a eosinofilia esofágica à DRGE. O primeiro relato descrevendo a EEo, como uma síndrome independente, caracterizada por disfagia para alimentos sólidos, e, portanto, diferenciada da DRGE, por meios de testes esofágicos, foi publicada em 1993. Subsequentemente, a EEo foi considerada uma enfermidade esofágica crônica mediada imunologicamente ou por antígenos. Entretanto, muitos casos ainda de EEo se sobrepõem à DRGE, e, por esta razão, um ensaio clínico com o uso do inibidor de bomba de próton, tornou-se o meio mais lógico e conveniente para diferenciar a DRGE da EEo. Esta prática baseou-se na hipótese de que o maior efeito do inibidor da bomba de próton somente inibiria a produção de ácido gástrico. De fato, em 2007, a Associação Americana de Gastroenterologia estabeleceu um consenso que definiu a EEo como um transtorno primário caracterizado por sintomas esofágicos e cujo biópsia esofágica, apresenta mais de 15 eosinófilos por campo de grande aumento, e na “ausência” da DRGE, ausência esta, evidenciada por testes de pHmetria normais, e fracasso na resposta ao tratamento com inibidores de bomba de próton (Figuras 1-2).
Este paradigma mutuamente exclusivo começou a ser desfeito quando se passou a levantar a possibilidade de uma complexa interação entre a DRGE e a EEo. Isto ocorreu porque alguns estudos têm demostrado que o tratamento com os inibidores de bomba de próton isoladamente em pacientes com EEo, têm sido responsáveis por eliminar a eosinofilia anteriormente observada. O reconhecimento desta condição, a qual foi denominada Eosinofilia Esofágica Responsiva aos inibidores de bomba de próton (EERIBP), vieram a causar novas confusões. Alguns estudos documentaram que entre 23% a 61% dos pacientes com eosinofilia esofágica sintomática respondem a um tratamento simples com inibidor de bomba de próton. Além disso, os aspectos clínicos, endoscópicos, histológicos e mesmo a expressão esofágica genética das EERIBP e EEo são virtualmente idênticas, portanto, a EERIBP assemelha-se muito mais à EEo do que à DRGE.
Uma descoberta extremante interessante a respeito desta controvérsia deveu-se ao reconhecimento de que a DRGE e a EEo, podem de forma independente provocar uma lesão esofágica via citocina-mediada. Contrariamente ao modelo no qual o ácido refluído causa uma lesão química que destrói as células esofágicas, novos estudos indicaram que a lesão esofágica encontrada em pacientes com DRGE, foi causada por células inflamatórias que são atraídas ao esôfago pelas citocinas produzidas pelas células epiteliais esofágicas, em decorrência da exposição do refluído ácido e da bile. Estudos utilizando cultura de células epiteliais esofágicas, revelaram efeitos anti-citocinas pelos inibidores de bomba de próton, que foram totalmente independentes dos efeitos da produção de ácido gástrico. Estes efeitos podem curar a DRGE e a EEo. Foi observado que o omeprazol pode bloquear a secreção de Eotaxina-3 estimulada por citocinas T-helper2 produzidas pelas células esofágicas de pacientes com EEo e DRGE, e bloqueia a secreção da interleucina8, um mediador de inflamação eosinofílica, após exposição ao ácido e aos sais biliares sobre as células epiteliais esofágicas de pacientes com DRGE.
O foco atual sobre como distinguir a EEo da DRGE pode, portanto, ser contraprodutivo, posto que as duas enfermidades geralmente coexistem com interações complexas. Pacientes com DRGE que apesentam a típica síndrome do refluxo associada com esofagite erosiva e hérnia hiatal podem apresentar eosinofilia na mucosa, a qual geralmente está confinada ao esôfago distal. Não está, todavia claramente estabelecida qual a proporção de pacientes com refluxo, que apresentam estas características, mas tudo indica que deve ser menos de 10%. A etiologia da eosinofilia na mucosa pode ser secundária a uma lesão direta do ácido, ou secundária aos efeitos da DRGE sobre a função da barreira esofágica, a qual torna o epitélio permeável aos antígenos alimentares, e causa eosinofilia esofágica induzida por antígenos. Os inibidores de bomba de próton podem atenuar, independentemente de ambos, os mecanismos patogênicos; uma cuidadosa diferenciação, realizada por meio da manometria esofágica e o teste do pH-impedanciometria, é necessária apenas para aqueles pacientes que requerem tratamento cirúrgico antirrefluxo.
2) Dispepsia Funcional (DF)
Estudos populacionais identificaram a DRGE e a DF, esta última definida como uma dor ou desconforto centralizada no abdome superior, como alguns dos sintomas mais comuns do trato gastrointestinal superior, com prevalência estimada em aproximadamente 20% para cada uma delas. Portanto, não deve ser surpreendente que a diferenciação entre a DRGE e a DP não tenha uma fronteira claramente definida. Além disso, mais de 33% dos pacientes com DF também relatam queixa de queimação retroesternal e regurgitação ácida e vice-versa. Este fato, encontra-se bem ilustrado no estudo de Diamond, no qual 42% dos pacientes que não apresentavam DRGE relataram DF como os seus primeiros ou segundos sintomas mais problemáticos, enquanto que este valor foi de 37% para os pacientes nos quais subsequentemente foi caracterizada a DRGE.
É importante ressaltar que a endoscopia e a pHmetria não distinguem esses grupos com alto nível de confiabilidade. Uma vasta revisão sistemática incluindo mais de 5 mil pacientes que apresentavam queixa primária de DF encontrou evidência endoscópica de esofagite em 13,4% dos pacientes, seguida de úlcera péptica em 8% deles. Tack e cols., relataram que 23% dos pacientes com DF apresentavam tempos de exposição ao ácido anormais, e que seu perfil de sintomas foi predominantemente dor epigástrica. Um estudo envolvendo 626 pacientes com DRGE erosiva tratada com pantoprazol para a cicatrização da esofagite, observou uma sobreposição entre a DRGE e os sintomas de DF em 62% dos pacientes. Vale notar que os sintomas de DF foram aliviados em 50% dos casos durante o tratamento com pantoprazol, e o contrário ocorreu com os sintomas de refluxo, os quais usualmente recidivam com o cessar do tratamento, os sintomas de DF demonstraram tendência de diminuir a longo prazo (Figuras 3-4).
3) Gastroparesia
A importância do retardo do esvaziamento gástrico na DRGE é controvertida. Estudos realizados há algum tempo indicavam que até 50% dos pacientes com refluxo apresentavam um retardo do esvaziamento gástrico para sólidos. Entretanto, estudos mais recentes, utilizando o teste padrão de esvaziamento gástrico de 4 horas, encontraram uma sobreposição entre 8% e 20% dos pacientes. Conceitualmente, retardo do esvaziamento gástrico resulta em volume aumentado do material no estômago, o qual poderia estar disponível para sofrer refluxo para o esôfago ou provocar distensão do estômago proximal, desencadeando relaxamentos transitórios do esfíncter esofágico inferior. Estudos recentes utilizando o teste da pH-impedanciometria encontraram que os valores de refluxo ácido não se encontravam aumentados, mas consistiam de refluxo de conteúdo alimentar, sendo que os eventos de refluxo ocorriam no período pós-prandial de substâncias líquidas e consistiam de refluxos não ou fracamente ácidos. Mulheres e diabéticos são mais propensos a apresentar gastroparesia associada a DRGE secundária. Queixas, tais como, distensão abdominal, dor, náusea, vômitos ou constipação podem ser guias auxiliares, e a manometria geralmente demonstra uma pressão normal do esfíncter esofágico inferior. Tratando-se a gastroparesia com dieta apropriada e pró-cinéticos pode-se evitar a necessidade do uso dos inibidores de bomba de próton ou cirurgia anti-refluxo (Figura 5).
Prevalência global da DRGE
O conjunto geral de prevalência de sintomas semanais da DRGE, revelado em estudos populacionais em todo o globo terrestre, é aproximadamente de 13%, mas, há uma considerável variação geográfica, a qual pode ser confirmada analisando-se a Figura 6.
As complicações predominantes da DRGE incluem disfagia, sangramento devido à esofagite erosiva e ao adenocarcinoma esofágico. Estenose esofágica recorrente que requer repetidas dilatações endoscópicas, trata-se de outra complicação importante, entretanto, a complicação mais temível da DRGE trata-se do adenocarcinoma esofágico, e sua lesão precursora o esôfago de Barret.
Genética
Estimativas da proporção da variância fenotípica dos sintomas da DRGE atribuídas aos fatores genéticos tem apresentado uma variação de 0% a 22%. Em um estudo envolvendo gêmeos foi estimada uma variação de 13% nos sintomas da DRGE em virtude dos efeitos genéticos, mas, mesmo esta proporção pareceu ser mediada por ansiedade e depressão. O risco genético para a DRGE é poligênico sem que exista uma mutação individual significantemente para a DRGE. Considerando-se o recente aumento da prevalência do refluxo, tomando-se em conta uma profunda investigação da história evolutiva, a etiologia do refluxo parece estar largamente relacionada a exposições ambientais.
Fatores de riscos ambientais
Os dois maiores fatores que podem explicar as tendências para a DRGE são a epidemia de obesidade e a diminuição da prevalência da gastrite associada ao Helicobacter pylori. A obesidade é o maior fator de risco para os sintomas da DRGE, e também está associada com esofagite erosiva, esôfago de Barret e adenocarcinoma esofágico. A obesidade esta largamente relacionada ao excesso de ingestão calórica e/ou a falta de atividade física, por este motivo, a associação da obesidade com a DRGE e suas complicações poderiam ser confundidas com a dieta e a atividade física. Algumas substâncias podem induzir sintomas da DRGE, tais como, alimentos gordurosos, chocolate e bebidas gasosas, e, indivíduos obesos podem consumir esses produtos de forma mais frequente do que aqueles não obesos.
Por outro lado, a relação entre atividade física e DRGE é complexa, posto que algumas modalidades de atividades físicas estão associadas com o aumento da DRGE. Por exemplo, posturas inclinadas, andar de bicicleta, levantamento de peso, natação e mesmo surf, têm sido associadas com o aumento do risco para a DRGE, particularmente durante ou após a respectiva atividade. Por outro lado, exercícios aeróbicos moderados e feitos com regularidade têm apresentado uma associação inversa com a DRGE.
A queda da prevalência das gastrites por Helicobacter pylori pode explicar a tendência da DRGE e suas complicações. Uma proporção de pacientes com essa infecção desenvolve atrofia do corpo gástrico e consequente diminuição da secreção ácida gástrica. Portanto, tem sido proposto que a infecção por Helicobacter pylori pode prevenir a DRGE em pacientes que são suscetíveis a ela. Esôfago de Barret e adenocarcinoma esofágico, mostram uma associação inversa com a infecção por Helicobacter pylori. Por outro lado, a gastrite antral devida a infecção por Helicobacter pylori teria uma tendência maior de levar a uma produção excessiva de secreção acida gástrica, do que sua diminuição, devido a uma retroalimentação positiva, a qual estimula a produção da secreção ácida gástrica.
Há exposições ambientais adicionais que são associadas com a DRGE, mas elas não poderiam explicar a tendência do aumento da prevalência da DRGE. Por exemplo, o uso do tabaco é um importante fator de risco para esofagite erosiva e adenocarcinoma esofágico. Tabaco também está associado com estenose esofágica nos pacientes que sofreram ressecção endoscópica ou radioterapia. Pacientes com sintomas da DRGE, geralmente relatam que esses sintomas se tornam mais intensos com a ingestão de álcool, e, estudos randômicos têm demostrado que a ingestão de álcool induz mais a refluxos ácidos do que a ingestão de água. Um estudo bem planejado não encontrou associação positiva do uso constante de álcool com esofagite erosiva, nem tampouco com esôfago de Barret.
Meus comentários
A ocorrência de refluxo gastro-esofágico é um evento muito frequente nos primeiros meses de vida das crianças, que se manifesta sob a forma de episódios recorrentes de regurgitações, os quais costumam causar grandes preocupações aos seus pais, principalmente naqueles que estão vivendo a primeira experiência da paternidade/maternidade. Estas manifestações se devem fundamentalmente a uma imaturidade e consequente incompetência do esfíncter esofágico inferior. Esta incompetência é transitória e à medida que o lactente vai se desenvolvendo os sintomas tendem a diminuir de frequência até finalmente desaparecerem ao redor do primeiro semestre de vida. Este tipo de manifestação clínica é, em princípio, considerado o que se denomina Refluxo Gastro-Esofágico Fisiológico. Caso o lactente, apesar dos episódios recorrentes de regurgitação, apresente desenvolvimento pondero-estatural adequado, e não refira qualquer outro sintoma que possa afetar sua qualidade de vida, a ele é jocosamente atribuído o rótulo de “Regurgitador Feliz”, e, portanto, não está indicado tratamento medicamentoso. Por outro lado, quando além dos episódios de regurgitação surgirem também outros sintomas que afetem a qualidade de vida, tais como, irritabilidade intensa, aspiração pulmonar, sangramento gastrointestinal, ganho pondero-estatural deficiente, entre outros, neste caso estamos frente a um quadro da Doença do Refluxo Gastro-Esofágico. Nestas circunstâncias o paciente deverá ser minuciosamente avaliado do ponto de vista clínico, para se considerar qual ou quais as investigações laboratoriais pertinentes a cada caso devem ser realizadas, para que se possa estabelecer o diagnóstico etiológico de certeza e, assim, se propor o tratamento adequado, clínico e/ou cirúrgico.
Referências Bibliográficas
- Richeter JE e Rubenstain JH: Gastroenterology, 2018; 154:267-276.
- Kessing BF e cols. Clin Gastroenterol Hepatol, 2015;13:1089-1095.
- Dent J e cols. Gut, 2010; 59:714-721.
- Tack J e cols. Gastroenterology, 2006; 130:1466-1479.