Estresse nos lactentes e pré-escolares: não responsabilize o refluxo ácido
Prof. Dr. Ulysses Fagundes Neto
A renomada revista Journal of Pediatric Gastroenterology and Nutrition publicou um artigo de pesquisa, em outubro de 2020, intitulado “Distress in infants and young children: don’t blame acid reflux”, de Salvatore, S. e cols., que abaixo passo a resumir em seus principais aspectos.
Introdução
O papel do Refluxo Ácido (RA), nos lactentes que choram continuamente e que se mostram estressados, tem sido debatido há muitos anos, e, ainda não está devidamente esclarecido. Os pais destas crianças geralmente se sentem muito ansiosos e estressados quando seus filhos estão chorando, e ficam muito preocupados se eles estão sentindo alguma dor e/ou uma doença orgânica.
Entretanto, estresse persistente e choro inconsolável pode resultar de um processo normal do desenvolvimento, atribuídos a transtornos funcionais que se diferenciam de doenças orgânicas, tais como, alergia alimentar, infecção, trauma ou condições cirúrgicas. O manejo desses episódios é desafiador para ambos, pais e médicos. O discernimento entre comportamento normal e estressado e cólica do lactente, relacionado ou não ao Refluxo Gastroesofágico (RGE) ou Doença do Refluxo Gastroesofágico (DRGE), é desafiador e dependente da percepção, dos cuidadores e dos profissionais de saúde, na forma de como lidar com a situação, e, bem como, na sua respectiva interpretação.
A transmissão de uma garantia de segurança aos pais, combinada com recomendações dietéticas são geralmente suficientes para reduzir a ansiedade dos mesmos e diminuir a sintomatologia da DRGE. Considerando-se que a queimação retroesternal é o principal sintoma apresentado pela DRGE em adultos, o estresse e o choro em lactentes, é geralmente percebido pelos profissionais da saúde como uma consequência do DRGE ácido. Por esta razão, antiácidos são frequentemente prescritos para os lactentes que apresentam choro inconsolável e estresse constante, e que podem se apresentar com ou sem regurgitação.
O reconhecimento e a quantificação da dor é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para propor o melhor tratamento e aliviar o sofrimento desnecessário. O escore “The Face, Legs, Activity, Cry, Consolability” (FLACC) é uma mensuração validada para avaliar a dor em lactentes e pré-escolares. O objetivo do presente estudo foi avaliar a relação entre o escore de estresse, utilizando a escala FLACC e o RGE, investigado pela monitoração da Impedância intraluminal de múltiplos canais–pHmetria (IIMC-pH) esofágica, que é considerada a melhor técnica diagnóstica para mensurar o refluxo gastroesofágico ácido e não ácido, e, ao mesmo tempo, identificar a possível associação do sintoma com o Refluxo.
Pacientes e Métodos
Desenho do Estudo
O estudo foi realizado de forma prospectiva e consecutiva incluindo todos os lactentes e pré-escolares abaixo de 24 meses de idade, encaminhados para a realização da IIMC-pH monitorada por 24horas, com queixa de estresse recorrente, choro inconsolável e inexplicável, como sintoma predominante ou associado a RGE. De acordo com a percepção dos pais, nenhuma criança apresentou melhora clínica suficiente após pelo menos 10 dias de educação e reforço aos pais, aconselhamento comportamental e dietético que incluiu correção do volume ingerido, espessamento e uso de fórmula com proteína hidrolisada, de acordo com a recomendação das guias de conduta para RGE.
Objetivos
O desfecho primário foi avaliar a associação temporal entre o estresse inexplicável com choro e o RGE detectado pela IIMC-pH. Os desfechos secundários foram avaliar a relação entre o escore FLACC e os resultados do IIMC-pH, para refluxo ácido e para refluxo não ácido, a duração do refluxo, a extensão esofágica e o índice de refluxo.
Avaliação do Estresse
Os pais foram instruídos a preencher um diário dos sintomas e a escala FLACC para todos os episódios de choro inexplicável, estresse ou agitação que tenham ocorrido durante a realização do teste IIMC-pH. A escala FLACC apresenta uma avaliação de 0 a 10, sendo que 0 representa ausência e 2 a máxima expressão para qualquer um dos 5 itens do FLACC (expressão facial, posição da perna, nível de atividade, tipo de choro e choro inconsolável).
Monitoração da Impedanciometria Intraluminal de Múltiplos Canais-pHmetria
Os sintomas foram considerados como temporalmente associados com RGE, caso eles tenham ocorrido 2 minutos antes ou após um episódio de refluxo. Refluxo ácido foi definido quando o pH esofágico foi <4, enquanto que Refluxo não-ácido foi definido como um episodio de pH >4.
Resultados
Os critérios do estudo foram preenchidos por 62 pacientes (36meninos, mediana de idade 3,5meses, variando de 15 dias a 23 meses, idade média 5,5±5,1 meses). Durante o período de monitoração, 452 episódios de estresse foram registrados e pontuados pelos pais na escala FLACC. Os números de episódios de estresse variaram de 1 a 32 episódios por paciente com uma mediana de 5 episódios e uma média de 7,3 episódios. Foram temporalmente associados ao RGE 217/452 (48%) períodos de estresse e 235 (52%) não mostraram essa associação. De acordo com o intervalo de tempo predefinido, o RGE precedeu o estresse em 128/217 (59%) dos episódios de estresse relacionados ao RGE, ao passo que a ocorrência de RGE após um episódio de estresse foi observado somente em 41/217 (19%) dos episódios de estresse relacionados ao RGE. O RGE e o estresse ocorreram simultaneamente em 48/217 (22%) episódios de estresse relacionados aos RGE (Figura 1).
No computo geral, ocorreram 361 (80%) episódios de estresse nos pacientes com índice de refluxo ácido <7% e 91(20%) nos pacientes com índice de refluxo ácido patológico. A mediana do FLACC foi significativamente mais baixo nos 12 lactentes (19%) com um índice de refluxo patológico comparado com os 50 lactentes (81%) com índice de refluxo normal. Por outro lado, em 128 episódios de estresse (28% do total de eventos, 59% dos eventos temporalmente associados ao RGE), coincidiram com refluxo não-ácido e apresentaram significância estatisticamente maior no score do FLACC em comparação com 89 eventos associados ao refluxo ácido. A duração de todos os episódios de RGE variou de 3 a 1495 segundos, apresentando uma significância de correlação negativa com os escores FLACC (Tabela 1 e 2).
Conclusão
Metade dos episódios de estresse relatados durante a realização do IIMC-pH, mostrou-se estar associado com RGE nessa população estudada. Quando o estresse ocorreu associado ao RGE, ele foi mais frequente com RGE não ácido (59%). Na população estudada o escore FLACC para refluxo não-ácido, foi maior estatisticamente significante do que o refluxo ácido (6 vs. 5; p=0.01), embora esta diferença não pareça ser clinicamente importante. Estes achados, entretanto, sugerem que o volume do material refluído ou a distensão esofágica, podem desempenhar um papel na gênese dos sintomas, especialmente porque ficou demonstrado que o RGE precede o estresse. A utilização medicamentosa de antiácido para os lactentes e pré-escolares com estresse, somente deve ser prescrita naqueles pacientes nos quais tenha sido demonstrado a associação temporal entre estresse e RGE ácido, posto que na maioria dos pacientes tal associação não ocorreu.
Meus Comentários
Este estudo conduzido de forma prospectiva e consecutiva trata-se da primeira investigação realizada para avaliar irritabilidade, choro inconsolável e estresse em lactentes e pré-escolares e sua associação com RGE, a quantificação dos sintomas e sua respectiva avaliação simultânea utilizando o escore FLACC e a IIMC-pH. Neste grupo de pacientes que apresentavam queixa de estresse inexplicável e ausentes de quaisquer outras enfermidades orgânicas, que não responderam satisfatoriamente durante as próximas 2 semanas de observação, levando-se em consideração as recomendações aos pais e os aconselhamentos dietéticos, foi caracterizada uma associação temporal entre choro inconsolável e RGE em metade dos episódios de estresse. Vale enfatizar que os escores FLACC não mostraram diferenças significativas que os episódios de estresse estivessem associados ou não ao RGE. Os escores FLACC mostraram-se menores quando associados ao RGE ácido do que aos RGE não-ácidos. Este fato nos leva a supor que o refluxo não-ácido é tão doloroso quanto o refluxo ácido.
É do conhecimento geral que a prescrição de anti-ácidos tem aumentado consideravelmente nos últimos anos para os lactentes que apresentam choro inconsolável e estresse, a despeito da falta de confirmação objetiva da existência da DRGE. Portanto, a administração empírica de anti-ácidos não deve ser recomendada para os lactentes que apresentam sintomas de estresse e choro inconsolável. Entendo que nestes casos se faz necessário uma abordagem diagnóstica de investigação mais profunda para poder oferecer o melhor tratamento para estes pacientes.
Referências Bibliográficas
- Salvatore S e cols. – JPGN 2020;71: 465-469
- Birnie KA e cols. – Pain 2019;160: 5-18
- Yadlapati R e cols. – J Allergy Clin Immunol 2018;141: 79-81
- Rosen R e cols. – JPGN 2018;66: 516-54