Intolerância à Lactose: mitos e realidade

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Introdução

O leite é a principal fonte alimentar da dieta dos mamíferos durante o período de aleitamento, e, por essa razão, sempre atraiu o interesse dos profissionais da saúde, da indústria alimentícia e das mães (Figura 1).

Figura 1- Amostras de leite humano: à esquerda leite inicial com baixa concentração de gordura e à direita leite maduro com elevada concentração de gordura.

Figura 1- Amostras de leite humano: à esquerda leite inicial com baixa concentração de gordura e à direita leite maduro com elevada concentração de gordura.

É um alimento reconhecidamente como de grande valor nutricional em cuja composição estão presentes os principais macronutrientes: proteínas, gorduras e carboidratos. A utilização do leite como parte constituinte da alimentação após o período de amamentação data aproximadamente de 6.000 anos e, portanto, os estudos sobre o leite trazem informações desde remotas eras. Além de fornecer energia e matéria plástica, o leite e seus derivados, além de outros micronutrientes, também são importantes fontes de cálcio, potássio, fósforo, riboflavina, magnésio, zinco e vitaminas lipo e hidrossolúveis, razão pela qual sua inclusão na dieta habitual de crianças, adolescentes e adultos está relacionada à prevenção da osteoporose e da hipertensão arterial.

Dentre os componentes nutricionais do leite e seus derivados é importante destacar a presença da lactose, carboidrato descoberto em 1633 por Bartoletus, em Bolonha, cuja síntese química foi obtida em 1927 por Haworth e cols., nos Estados Unidos. A lactose somente é encontrada na natureza como produto específico da secreção da glândula mamária e desde o ponto de vista evolutivo possui 100.000.000 de anos.

O principal carboidrato do leite, a lactose, a qual lhe confere um sabor levemente adocicado, é a maior fonte de carboidratos dos lactentes; naquelas sociedades tradicionais nas quais o período de amamentação é exclusivo e prolongado, a lactose se constitui praticamente na única fonte de carboidrato na dieta do lactente até o início do desmame.

O presente trabalho de revisão tem por objetivo abordar a fisiologia da lactose, os mais diversos aspectos genéticos da lactase e os diferentes tipos da sua deficiência, bem como suas conseqüências, a prevalência, as manifestações clínicas, os critérios diagnósticos, o tratamento e as implicações nutricionais da má absorção e/ou intolerância à lactose.

Fisiologia da Lactose: composição e digestão

A lactose, Saccharum lactis, é um dissacarídeo (beta-galactosil-1,4-glicose) constituído pelos monossacarídeos glicose(alfa-d-glicose) e galactose (beta-d-glicose), sendo um carboidrato primário presente exclusivamente no leite, produto específico da secreção das glândulas mamárias e para ser sintetizada requer a participação de duas proteínas: galactosil tranferase e α-lactoalbumina (Figura 2).

Figura 2- Composição química da Lactose e seus monossacarídeos constituintes: Glicose e Galactose.

Figura 2- Composição química da Lactose e seus monossacarídeos constituintes: Glicose e Galactose.

A concentração de lactose no leite dos mamíferos apresenta uma considerável variabilidade entre as diferentes espécies, e mantém uma relação inversamente proporcional com as concentrações das proteínas e gorduras. Por exemplo, o leite da foca, Zalphus californianus, não possui nenhum carboidrato e a glicose encontrada no sangue dos filhotes durante o período da amamentação é derivada primariamente do glicerol da gordura do leite da foca. Com exceção desses animais a lactose é encontrada no leite de todos os outros mamíferos, sendo que a maior concentração deste carboidrato é verificada no leite humano (7 gramas%) (Figura 3).

Figura 3

Figura 3

Nos outros mamíferos (vaca, ovelha e cabra), dos quais se ordenha o leite para o consumo humano, a concentração da lactose encontra-se ao redor de 5g/100 ml (Figura 4).

Figura 4

Figura 4

Por ser um dissacarídeo, possui uma estrutura química complexa e, portanto, não pode ser absorvida em seu estado natural. Por esta razão, necessita ser desdobrada em seus monossacarídeos constituintes, glicose e galactose, e, após essa digestão os monossacarídeos são absorvidos pelas células do intestino e alcançam a circulação. A digestão da lactose é executada por uma enzima específica denominada lactase (β-galactosidase), a qual se encontra nas microvilosidades dos enterócitos (Figura 5).

Figura 5- Desenho esquemático da hidrólise da Lactose pela Lactase no polo apical das microvilosidades do enterócito.

Figura 5- Desenho esquemático da hidrólise da Lactose pela Lactase no polo apical das microvilosidades do enterócito.

A digestão desse carboidrato ocorre em todo intestino delgado, no entanto a atividade da lactase é intensa no jejuno proximal, pequena no duodeno e jejuno distal e praticamente ausente no íleo terminal.  A absorção dos subprodutos da lactose (glicose e galactose) ocorre em diferentes velocidades. O fator determinante da velocidade máxima de digestão depende da quantidade de lactase presente na mucosa intestinal. Os monossacarídeos resultantes da hidrólise da lactose passam através da mucosa e são transportados de maneira ativa até a corrente sanguínea sendo sódio-dependentes para o seu transporte. Quando estão na corrente sanguínea, seguem pela veia porta até o fígado, onde são metabolizados.

Aspectos genéticos da deficiência de Lactase

Mendel, em 1909, demonstrou nitidamente que a lactase encontra-se presente, e em grande quantidade no intestino dos mamíferos (exceção feita à foca), durante o período de amamentação e ausente ou em menor concentração nos adultos. Somente após 60 anos comprovou-se, por meio de determinação bioquímica, a elevada atividade da lactase no recém-nascido humano; tal enzima atinge atividade máxima durante o período perinatal e é seguida por uma notável depressão progressiva ou mesmo desaparecimento na vida adulta. Embora haja pequenas diferenças nos tempos exatos nos quais o desenvolvimento da atividade máxima da lactase é alcançado entre os diferentes mamíferos, uma configuração geral da curva de atividade máxima da enzima está bem definida durante o período perinatal, a qual é seguida por uma nítida depressão ou mesmo desaparecimento da atividade após o desmame e na vida adulta (Figura 6).

Na verdade, após o desmame, cerca de 75% da população mundial sofre um declínio da atividade da lactase, que é geneticamente determinado, sendo denominado hipolactasia do tipo adulto ou deficiência de lactase, o qual pode acarretar má digestão e consequentemente má absorção e/ou intolerância à lactose.

Desconfortos gastrointestinais em adultos após o consumo de leite e derivados foram descritos em antigos textos gregos e romanos, porém, não são conhecidos relatos clínicos da deficiência de lactase até meados do século XX; portanto, o problema não tinha sido estudado até o desenvolvimento de novas técnicas para se determinar laboratorialmente a ação enzimática da lactase no intestino. Conseqüentemente a alta prevalência da diminuição da atividade da lactase em adultos saudáveis foi descrita somente na década de 1960 por A. Dahlqvist e cols. Pesquisas em todo o mundo nas décadas de 1960 e 1970 mostraram que a perda da atividade da lactase na idade adulta é uma condição comum nos seres humanos e nos mamíferos adultos. Por outro lado, aqueles adultos que conservam a capacidade de digerir a lactose representam uma inovação evolutiva “anormal”. Por esta razão, embora o leite continue a ser utilizado em larga escala no mundo ocidental, na vida adulta, na maior parte do globo terrestre, o leite nunca mais é servido como alimento depois do período da amamentação. Esta habilidade que alguns grupos étnicos adquiriram para digerir a lactose após o período da amamentação e que se prolonga por toda a vida é explicada por uma mutação genética baseada na hipótese histórico-cultural que adiante será detalhadamente discutida.

Os mecanismos do controle da produção da lactase têm sido profundamente debatidos ao longo dos anos por antropólogos, cientistas sociais, historiadores, cientistas e médicos. Alguns pesquisadores, baseados em estudos de regulação genética nas bactérias, argumentavam nos anos 1960 que a lactase era uma enzima induzível pela presença do substrato, ou seja, que a produção da lactase acreditava-se ser estimulada pela presença da lactose. Baseando-se nesta visão, as populações que não utilizavam o leite na vida adulta perdiam a capacidade de produzir a lactase, enquanto que aqueles grupos que consumiam o leite e seus subprodutos conservavam a capacidade de produzir a lactase.

Entretanto, estudos bioquímicos colocaram em dúvida esta hipótese, e investigações realizadas com grupos de famílias demonstraram que a produção da lactase é controlada por um gene autossômico dominante localizado no cromossoma 2. A persistência da produção da lactase é, portanto, um traço dominante. Os dois alelos passaram a ser denominados de LAC*P para a persistência de produção da lactase e LAC*R para a restrição da produção da lactase na vida adulta. O lócus LAC parece ser um gene regulador que reduz a síntese da lactase pela redução da transcrição do RNA mensageiro. Indivíduos que herdam os alelos LAC*P dos seus pais mantém a produção da lactase na vida adulta, enquanto que aqueles indivíduos que herdam os alelos LAC*R de ambos os pais deixam de produzir a lactase na vida adulta. Os heterozigotos receberão diferentes alelos, LAC*P/LAC*R, mas como LAC*P é um traço dominante, a atividade da lactase mantém-se ao longo da vida adulta e conseqüentemente também sua habilidade para digerir a lactose.

Uma nítida demonstração da hipótese genética de que a persistência da produção da lactase é um traço dominante foi obtida a partir de um estudo realizado na África envolvendo duas populações distintas quanto à capacidade de digerir a lactose na vida adulta. Foram incluídos no estudo um grupo da etnia Yoruba, reconhecidamente não absorvedores à lactose, um grupo misto Yoruba-Europeus dos quais 44% eram não absorvedores à lactose, e um grupo de Europeus com apenas 22% de não absorvedores. Quando ambos os pais eram não absorvedores toda a progênie resultou não absorvedora; entretanto, quando se deu o cruzamento entre um dos pais, absorvedor à lactose, com um não absorvedor à lactose, ou quando ambos os pais eram absorvedores à lactose, obteve-se como resultado final uma progênie mista (Figura 7).

Figura 7- Representação esquemática da resultante do cruzamento entre absorvedores e não absorvedores à lactose. Na parte alta da figura quando ambos os pais eram não absorvedores resultou em uma progênie de não absorvedores; na parte baixa quando um dos pais (em negro) eram absorvedores a progênie resultou mista.

Figura 7- Representação esquemática da resultante do cruzamento entre absorvedores e não absorvedores à lactose. Na parte alta da figura quando ambos os pais eram não absorvedores resultou em uma progênie de não absorvedores; na parte baixa quando um dos pais (em negro) eram absorvedores a progênie resultou mista.

Na era Paleolítica, antes da fase da domesticação dos animais, os lactentes humanos consumiam o leite das suas mães somente durante o período que abrangia desde o nascimento até o desmame. Após o desmame o leite deixava de ser um nutriente da dieta do indivíduo. Os seres humanos somente tiveram a oportunidade de obter regularmente o leite quando os animais selvagens foram domesticados. Atualmente sabe-se que os primeiros animais a serem domesticados foram os carneiros, e este acontecimento data de 9.000 anos antes de Cristo. Entretanto, as primeiras claras evidências aceitáveis da utilização do Leite dos animais foram obtidas na região do Saara e datam de 4.000 a 3.000 anos antes de Cristo, portanto, cerca de 5.000 anos depois do início da domesticação dos animais (Figuras 8 e 9).

 

Figura 8- Cena de ordenha no Egito, ano 2900 antes de Cristo, encontrada em escavação, qual acredita-se tenha contexto religioso. (Cópia de Simoons, Geographical Review, vol. 61, 1971, copyright da American Geographical Society of New York).

Figura 8- Cena de ordenha no Egito, ano 2900 antes de Cristo, encontrada em escavação, qual acredita-se tenha contexto religioso. (Cópia de Simoons, Geographical Review, vol. 61, 1971, copyright da American Geographical Society of New York).

 

Figura 9- Desenho em rocha na região do Saara (período medieval pecuário, 4.000 a 3.000 antes de Cristo). (Cópia de Simoons, Geographical Review vol.61, 1971, copyright da American Geographical Society of New York).

Figura 9- Desenho em rocha na região do Saara (período medieval pecuário, 4.000 a 3.000 antes de Cristo). (Cópia de Simoons, Geographical Review vol.61, 1971, copyright da American Geographical Society of New York).

Logo após o início do hábito do uso dos produtos lácteos ter se desenvolvido, este rapidamente se espalhou por todo o universo. Entretanto, o uso do leite e dos laticínios não havia sido adotado por todos os povos do Velho Mundo (Europa, Ásia e África) quando da época dos grandes descobrimentos no século XVI (1500). Por exemplo, na África, muito embora inúmeras tribos tivessem hábitos pecuários e fossem capazes de digerir a lactose e se utilizassem do leite na vida adulta, tais como os Fulani, Hima e Tussi, cerca de 1/3 dos habitantes do continente africano era constituído por indivíduos mal absorvedores à lactose. A região ocidental da África, como por exemplo, habitada pelos povos que viriam a serem trazidos para o Novo Mundo, os Ibo, Yoruba e Hausa, não possuíam hábitos pecuários e apresentavam altas taxas de mal absorvedores à lactose. Vale a pena enfatizar que os povos nativos habitantes das Américas não eram consumidores do leite e seus derivados na vida adulta. De fato, estudos realizados principalmente nas décadas de 1960 e 1970, envolvendo as mais variadas etnias de populações nativas das Américas, do Norte, Central e do Sul, e seus descendentes demonstraram taxas de aproximadamente 100% de mal absorvedores à lactose em indivíduos adultos.

Por outro lado, os povos do norte da Europa, tais como os escandinavos, britânicos, irlandeses, alemães, holandeses, suíços, polacos, franceses, italianos do norte, espanhóis, e a população branca dos Estados Unidos e Canadá apresentam taxas muito baixas (30% ou menos) de mal absorvedores à lactose. Essa capacidade de digerir a lactose na vida adulta adquirida por esses povos deve-se a uma mutação genética explicada pela hipótese histórico-cultural. Esta hipótese parte da premissa de que durante os estágios precoces da evolução humana, os seres humanos muito provavelmente apresentavam o mesmo padrão de desenvolvimento da atividade da lactase que os demais mamíferos. Como já foi anteriormente mencionado, admite-se que os lactentes humanos teriam níveis elevados de lactase no intestino antes do desmame e que a partir deste momento haveria uma queda abrupta a qual persistiria durante toda a vida adulta. Supõe-se que por necessidade de sobrevivência, em especial no norte da Europa, em virtude da dificuldade de obtenção de alimentos devido aos rigores do clima, os habitantes dessa região passaram a utilizar o leite do gado estabulado, inicialmente em pequenas quantidades, posto que houvesse pouca disponibilidade do mesmo. Quando o leite tornou-se disponível em abundância, seu consumo passou a ser generalizado e os sintomas de má absorção à lactose passaram a ocorrer com freqüência; então, várias possibilidades vieram a ocorrer. Em primeiro lugar, foi limitar o seu consumo a níveis toleráveis de absorção. Em segundo lugar, modificar a composição do leite, processando-o de tal forma a diminuir a concentração da lactose por meio da fermentação, gerando subprodutos tais como iogurte e queijos. Nenhum desses procedimentos teria sido capaz de impedir o declínio da atividade da lactase após o desmame, e, assim, o consumo de laticínios per se não deve ter levado à elevação da atividade da lactase ao longo da vida adulta. Acredita-se, na verdade, que este fenômeno, somente pode ter ocorrido devido a uma seleção genética, de tal forma que surgiram indivíduos de comportamento “aberrante” com altos níveis de atividade da lactase ao longo da vida, os quais se tornaram favorecidos na luta pela sobrevivência. Estes indivíduos de comportamento “aberrante” puderam tolerar o leite em grandes quantidades, e, com isso, também conseguiram desfrutar melhor saúde, adquiriram maior vigor físico, maior capacidade de multiplicação e maior disposição para defender suas famílias contra outros agressores. Finalmente, estas populações do norte da Europa invadiram outros povoados da região, conquistando-os e, assim, disseminaram o gene da capacidade de digerir a lactose, visto que como sabemos esta propriedade é controlada por um gene autossômico dominante. É por esta razão que inúmeros povos descendentes de etnias do norte da Europa, e que se encontram espalhados por todo o globo terrestre, em especial nas Américas e Austrália, apresentam altas taxas de tolerância à lactose, e, conseqüentemente, conseguem consumir o leite ao longo de toda a vida.

Prevalência da deficiência de Lactase

A prevalência da deficiência de lactase varia de acordo com os grupos étnicos e está relacionada com a utilização de produtos lácteos na dieta, e/ou como resultado da seleção genética de indivíduos com a capacidade de digerir a lactose.

Estudos epidemiológicos mostram que as populações que nos seus primórdios dependiam da pecuária muito mais do que da agricultura, eram grandes consumidoras de leite e laticínios em geral, e por isso apresentavam menor prevalência de intolerância à lactose em relação àquelas que dependiam mais da agricultura para sobreviver.

No geral, a prevalência da hipolactasia primária do adulto varia no mundo. Verifica-se em torno de 5% na Grã-Bretanha e no nordeste da Europa, próximo ao mar do Norte, 4% na Dinamarca, na Suécia varia de 1 a 7%, e aumenta significativamente na direção do centro-sul da Europa, chegando próximo aos 100% na Ásia e Oriente Médio.

Segundo Siddiqui, dentre os grupos étnicos com deficiência de lactase podemos destacar uma prevalência de 80% a 100% de populações nativas americanas, 60% a 80% de judeus Ashkenazi e populações africanas da América, 50% a 80% das populações hispânicas e em torno de 70% das populações do sul do subcontinente indiano. Ainda ressalta que entre 6% a 22% da população branca da América sofrem de deficiência primária de lactase.

A população brasileira se caracteriza, essencialmente, pelo elevado grau de miscigenação, portanto em sua composição incluem-se inúmeras etnias com potencial tendência de apresentação de deficiência da lactase ontogeneticamente determinada, e dentre elas podemos destacar, os negros, índios, asiáticos em geral, judeus, europeus e latinos.

Tipos de intolerância à Lactose

A literatura é vasta em conceitos para caracterizar cada um dos termos que abaixo serão referidos e muitas vezes podem trazer confusões diagnósticas e interpretações equivocadas de cada uma desssa denominações.

São descritas como intolerâncias alimentares quaisquer respostas adversas a um aditivo ou alimento, sem que necessariamente ocorram as mediações imunológicas. Estas podem ser ativadas por ação de toxinas produzidas por bactérias, fungos, agentes farmacológicos ou erros metabólicos por deficiência enzimática. Dentre as intolerâncias alimentares se destaca a intolerância à lactose, por ser frequentemente encontrada na prática médica. Segue abaixo a descrição detalhada, segundo Melvin e Heyman, dos diferentes tipos de má absorção de lactose e/ou intolerância à lactose:

Má absorção: é um problema fisiopatológico que pode se manifestar ou não como intolerância à lactose e deve-se a um desequilíbrio entre a quantidade de lactose ingerida e a capacidade disponível da lactase para hidrolisar o substrato (reação enzima x substrato).

Gasparin e cols., em 2010, realizaram um estudo no Brasil demonstrando que mais de 27 milhões de habitantes apresentam má absorção da lactose, sendo que esta ocorreu principalmente por determinação genética.

Vale ainda ressaltar que a má digestão e/ou absorção de lactose não resultam, necessariamente, em intolerância à lactose.

Intolerância: é uma síndrome clínica caracterizada por um ou mais dos seguintes sintomas: dor abdominal, diarréia, náusea, flatulência e/ou distensão abdominal após a ingestão de leite e/ou de alguma substância contendo lactose. A quantidade de lactose que poderá causar qualquer sintomatologia varia de indivíduo para indivíduo, dependendo da quantidade ingerida, do grau de deficiência de lactase, e também, da forma da substância na qual a lactose está presente.

Duas patologias ligadas ao consumo de leite e derivados são extremamente confundidas no momento do diagnóstico e do tratamento nutricional, podendo influenciar diretamente no estado nutricional e prognóstico do paciente. Por isso, é extremamente importante diferenciar a alergia à proteína do leite de vaca (APLV) da intolerância à lactose; vale ressaltar que a alergia alimentar é mediada pelo sistema imunológico, desencadeando mecanismos de ação contra o antígeno causador, gerando sinais e sintomas após a ingestão do alimento, os quais podem, em certas circunstâncias, serem idênticos aos da intolerância à lactose. Tais diferenças são abreviadamente descritas na Tabela, segundo Tumas e Cardoso.

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Deficiência primária de Lactase: é caracterizada pela ausência relativa ou absoluta da lactase, a qual inicia sua ocorrência em idade variáveis, em geral a partir do 5º ano de vida, em distintos grupos étnicos e é a causa mais comum de má absorção e intolerância à lactose. A deficiência primária de lactase é também denominada hipolactasia do tipo adulto ou ontogeneticamente determinada.

Embora a deficiência primária de lactase possa se apresentar de uma maneira relativamente aguda sob a forma de intolerância ao leite, sua instalação é tipicamente sutil ao longo dos anos, surgindo no final da adolescência ou, mais tarde, na vida adulta. A maioria dos indivíduos adultos permanece com apenas 10% da capacidade de produção da lactase em relação aos níveis observados durante o período de lactente. É interessante mencionar que mesmo aqueles indivíduos com intolerância à lactose na vida adulta são capazes de tolerar um copo de leite, entretanto, quando eles ingerem uma quantidade adicional de leite os sintomas de intolerância podem se manifestar. Portanto, pode-se depreender que a deficiência primária de lactase é uma condição natural na vida adulta, e, conseqüentemente, muitos indivíduos apresentarão sintomas de intolerância à lactose se consumirem leite, especialmente em grandes quantidades.

Deficiência secundária de lactase: é a deficiência de lactase que resulta de uma lesão da mucosa do intestino delgado, tal como diarréia aguda, diarréia persistente, sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado ou outras causas de agressões à mucosa do intestino delgado, podendo estar presente em qualquer idade, porém, é mais comumente observada nos lactentes e pré-escolares.

Tal deficiência implica em uma subjacente condição fisiopatológica, a qual é responsável pela subsequente deficiência de lactase e que pode até mesmo acarretar má absorção e/ou intolerância à lactose. Dentre as possíveis etiologias inclui-se com maior frequência a diarréia aguda, bacteriana ou viral, quando o agente enteropatogênico é capaz de provocar lesão sobre a mucosa do intestino delgado, levando à perda da atividade da lactase normalmente existente nas microvilosidades dos enterócitos. Células epiteliais imaturas que substituem estas são muitas vezes deficientes de lactase, o que causa deficiência secundária de lactase e pode, desta forma, induzir a má absorção de lactose.  Giardíase, criptosporidíase, e outros parasitas que infectam o intestino delgado proximal freqüentemente levam à má absorção de lactose devido uma lesão direta ao enterócito pelo parasita.

Rotavirus é o principal agente viral causador de diarréia aguda na infância e é conhecida sua capacidade de provocar lesões de variadas intensidades sobre a mucosa do intestino delgado. Inúmeros estudos recentes de meta-análise têm demonstrado que crianças sofrendo de diarréia aguda por rotavirus e que não apresentam grau importante de desidratação podem continuar a receber fórmulas lácteas contendo concentrações habituais de lactose, sem que ocorram manifestações de intolerância alimentar. Nestes casos a utilização de fórmula contendo lactose não irá interferir de forma negativa sobre o estado de hidratação, o estado nutricional, a duração da doença ou o sucesso terapêutico. Entretanto, nos lactentes de maior risco, ou seja, aqueles menores de 3 meses ou com algum grau de agravo nutricional, a intolerância à lactose poderá estar presente e ser um fator importante na perpetuação da diarréia (Figura 10).

 

Figura 10- Ultramicrofotografia do Rotavirus. Sua designação se deve ao seu aspecto similar à uma roda denteada.

Figura 10- Ultramicrofotografia do Rotavirus. Sua designação se deve ao seu aspecto similar à uma roda denteada.

Nas comunidades desprovidas dos benefícios do saneamento básico e naquelas populações que vivem em condições de promiscuidade tornam-se especialmente prevalentes as infecções intestinais pelas cepas enteropatogênicas de Escherichia coli. Em particular, as cepas que possuem a capacidade de provocar adesão localizada ou enteroagregativa em cultura de tecido com células HeLa são altamente agressivas sobre a mucosa do intestino delgado (Figura 11).

 

Figura 11- Incubação de Escherichia coli O111 em cultura de células HeLa evidenciando nichos da bactéria com aspecto característico de adesão localizada.

Figura 11- Incubação de Escherichia coli O111 em cultura de células HeLa evidenciando nichos da bactéria com aspecto característico de adesão localizada.

Estes agentes afetam principalmente lactentes durante os primeiros anos de vida e devido sua ação fisiopatológica provocam graves lesões na mucosa do intestino delgado e estão freqüentemente associadas a intolerâncias alimentares. As cepas de Escherichia colienteropatogênicas clássicas, em especial as O111 e O119, possuem a propriedade de produzir as típicas lesões em pedestal, causando total destruição na região das microvilosidades dos enterócitos (Figuras 12- 13-14-15).

 

Figura 12- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum (grande aumento) de um paciente portador de diarréia persistente por infecção com Escherichia coli O111 demonstrando a presença de nichos de bactérias na superfície epitelial com intensa destruição dos enterócitos.

Figura 12- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum (grande aumento) de um paciente portador de diarréia persistente por infecção com Escherichia coli O111 demonstrando a presença de nichos de bactérias na superfície epitelial com intensa destruição dos enterócitos.

 

Figura 13- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum, corte semi-fino, de um paciente portador de diarréia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 evidenciando a presença de nichos de bactérias recobrindo a superfície epitelial do intestino delgado causando destruição das microvilosidades.

Figura 13- Material de biópsia de intestino delgado em microscopia óptica comum, corte semi-fino, de um paciente portador de diarréia persistente por infecção causada por Escherichia coli O111 evidenciando a presença de nichos de bactérias recobrindo a superfície epitelial do intestino delgado causando destruição das microvilosidades.

 

Figura 14- Ultramicrofotografia do enterócito em fase inicial de infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a destruição das microvilosidades e a presença de algumas bactérias no interior do enterócito.

Figura 14- Ultramicrofotografia do enterócito em fase inicial de infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a destruição das microvilosidades e a presença de algumas bactérias no interior do enterócito.

 

Figura 15- Ultramicrofotografia do enterócito com a clássica formação em pedestal devido a infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a bactéria firmemente aderida à superfície do enterócito e a completa destruição das microvilosidades.

Figura 15- Ultramicrofotografia do enterócito com a clássica formação em pedestal devido a infecção por cepa de Escherichia coli O111; observar a bactéria firmemente aderida à superfície do enterócito e a completa destruição das microvilosidades.

Intolerância à lactose e mesmo aos monossacarídeos da dieta podem estar associadas em altas porcentagens dos casos (em nossa experiência em até 40% dos casos), levando à perpetuação da diarréia com intenso agravo nutricional e elevado risco de morte (Figuras 16-17).

Crianças portadoras de Enteropatia ambiental sofrem também risco potencial de apresentarem intolerância à lactose. Estas crianças muito comumente sofrem algum grau de agravo nutricional em virtude do sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Bactérias da flora colônica, em especial as anaeróbias como osBacteróides e Veilonella, quando presentes no lúmen do intestino são capazes de provocar inúmeros eventos fisiopatológicos causando graves lesões à mucosa jejunal. Em virtude do sobrecrescimento bacteriano vai ocorrer desconjugação e 7α desidroxilação dos sais biliares primários (ácido cólico e quenodeoxicólico) transformamdo-os em sais biliares secundários (ácido deoxicólico e ácido litocólico), os quais são altamente lesivos à mucosa jejunal (Figuras 18 a 23).

 

Figura 19- Morfologia do intestino delgado em diferentes situações de contaminação ambiental.

Figura 20- Representação esquemática da desconjugação e 7 alfa desidroxilação dos sais biliares primários.

Figura 20- Representação esquemática da desconjugação e 7 alfa desidroxilação dos sais biliares primários.

Figura 21- Representação esquemática da lesão do intestino delgado e deficiência de lactase devido ao sobrecrescimento bacteriano.

Figura 21- Representação esquemática da lesão do intestino delgado e deficiência de lactase devido ao sobrecrescimento bacteriano.

Figura 22- Material de biópsia de jejuno de um paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando intensa atrofia vilositária e aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Figura 22- Material de biópsia de jejuno de um paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando intensa atrofia vilositária e aumento do infiltrado linfo-plasmocitário na lâmina própria.

Figura 23- Ultramicrofotografia do intestino delgado de paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando importante lesão das microvilosidades, as quais se encontram diminuídas em número e altura.

Figura 23- Ultramicrofotografia do intestino delgado de paciente portador de Enteropatia Ambiental evidenciando importante lesão das microvilosidades, as quais se encontram diminuídas em número e altura.

Lactentes jovens com desnutrição grave desenvolvem atrofia intestinal que também implica em deficiência secundária à lactose. Por esta razão, a Organização Mundial de Saúde recomenda evitar leite contento lactose em crianças com diarréia persistente (com duração superior a 14 dias).

Deficiência congênita de lactase: enfermidade extremamente rara, de origem autossômica recessiva, com incidência de 1:60.000 nascidos vivos, relatada em poucas crianças e potencialmente letal em épocas que não existiam substitutos para o leite.

Recém-nascidos afetados cursam com diarréia intratável logo que o leite humano ou fórmula láctea contendo lactose é introduzido; no caso de o diagnóstico não for suspeitado apresentam diarréia osmótica com perda de nutrientes que levam a desnutrição, desidratação e acidose metabólica. Substâncias redutoras nas fezes são facilmente detectadas e o pH fecal torna-se ácido. A resposta clínica ocorre poucas horas após a retirada da lactose da dieta e o desenvolvimento da criança passa a ser normal. Vale enfatizar que esta deficiência enzimática é permanente, e que, portanto, a lactose deve ser evitada durante toda a vida.

A literatura descreve dois tipos clínicos de deficiência congênita de lactase:

Alactasia congênita: manifesta-se com o aparecimento de diarréia ácida, desidratação e acidose metabólica desde os primeiros dias de vida, logo após a introdução da alimentação com leite, seja ele materno ou não.

Intolerância congênita à lactose: quadro clínico semelhante ao da alactasia congênita, acompanhado de lactosúria, aminoacidúria e acidose renal, com predomínio de vômitos. Neste segundo tipo, os sintomas desaparecem com a infusão da lactose no duodeno, através do uso de sonda pós-pilórica, sugerindo alguma alteração na permeabilidade gástrica. Caso não seja rapidamente identificada e controlada com a utilização de fórmula láctea isenta de lactose, pode levar à morte, devido à ocorrência de desidratação e distúrbios hidroeletrolíticos graves.

Deficiência de lactase do desenvolvimento: é caracterizada como deficiência relativa de lactase observada entre prematuros com menos de 34 semanas de gestação.

No trato gastrointestinal imaturo, a lactase e outras dissacaridases são deficientes até pelo menos a 34º semana gestacional. Melvin e cols. investigando prematuros relataram o benefício da suplementação com lactase e fórmulas com baixo teor de lactose; porém, por outro lado, também demonstraram que o leite humano e fórmulas contendo lactose não provocaram quaisquer efeitos deletérios a curto ou longo prazo em recém-nascidos prematuros. Até 20% da lactose dietética pode atingir o cólon em recém-nascidos e crianças jovens. O metabolismo bacteriano da lactose diminui o pH fecal (abaixo de 6) provocando um efeito benéfico, já que favorece a proliferação de microorganismos protetores do trato digestivo (eg, Bifidobactériase espécies de Lactobacilos) ao invés de favorecer o surgimento de agentes potencialmente patogênicos (espécies de Proteus, Escherichia coli e Klebsiella) em lactentes jovens. Agentes antimicrobianos podem afetar negativamente esta colonização benéfica.

Manifestações clínicas da intolerância à Lactose

Nos indivíduos que apresentam deficiência de lactase, além da baixa atividade enzimática no intestino delgado existem também vários outros fatores envolvidos no surgimento dos sintomas, dentre os quais devem ser levados em consideração a quantidade de lactose ingerida, o sexo, a idade, presença de gravidez, sensibilidade visceral e anormalidades motoras do intestino.

Os principais sintomas de intolerância à lactose resultam da fermentação bacteriana no cólon e incluem dor e distensão abdominal, flatulência, cólicas intestinais, diarréia e em algumas ocasiões náuseas e vômitos; pode também, em algumas situações, ocorrer diminuição da motilidade gastrointestinal, e conseqüentemente, os indivíduos apresentarem constipação, possivelmente como conseqüência da produção de metano.

Todos os sintomas citados são parcialmente dependentes da capacidade funcional da atividade da lactase, e, acima de tudo, estão diretamente relacionados com a quantidade de lactose ingerida, ou seja, como se trata de uma reação enzima-substrato, se houver excesso de substrato (lactose) para ser digerido pela enzima (lactase), tais sintomas poderão surgir algumas horas após a ingestão do leite. Portanto, é importante destacar que a intensidade dos sintomas dependerá, estritamente, de uma relação diretamente proporcional entre concentração de lactose no alimento para a atividade da lactase na mucosa intestinal. Quando a atividade da lactase da mucosa intestinal é deficiente, ou a mesma não se apresenta nas vilosidades intestinais, a lactose da dieta permanece na luz do intestino e pela ação fermentativa da microflora bacteriana colônica são produzidas quantidades anormais de hidrogênio, dióxido de carbono e ácidos orgânicos volateis de cadeia curta (ácidos acético, butírico e propiônico) (Figura 24).

Figura 24- Produtos da metabolização da Lactose pela flora colônica.

Figura 24- Produtos da metabolização da Lactose pela flora colônica.

Dentre todos os sintomas acima referidos, indiscutivelmente, a diarréia é o que apresenta maior risco para o paciente, em especial durante o período de lactente, posto que o leite representa, parcialmente, a única ou pelo menos a maior fonte alimentar da dieta nesta fase da vida. Nestas circunstâncias, caso o diagnóstico não seja estabelecido rapidamente, a diarréia pode se tornar crônica acarretando agravo nutricional que pode ser confundida com processo infeccioso sistêmico. A lactose não digerida permanece presente na luz do intestino provocando fluxo de água e eletrólitos do organismo para o lúmen intestinal, cujo volume de fluído acumulado supera a capacidade de reabsorção de água pelo intestino grosso, sendo eliminado sob a forma de fezes líquidas. A lactose não digerida permanece na luz do intestino e por pressão osmótica promove afluxo de água e eletrólitos para seu interior (aproximadamente, 5 gramas de monossacarídeos ou 10 gramas de dissacarídeos retêm, osmoticamente, 100 mL de água), e alcança o colon. Ao se suspender a lactose da dieta, o quadro diarréico cessará, portanto, interrompida a causa, o efeito desaparecerá.

Dor abdominal crônica costuma ser um dos sintomas predominantes de intolerância à lactose. Mesmo o consumo de pequena quantidade do carboidrato – 12 gramas correspondem a um copo de leite de 250 mL – pode ser a causa deflagradora do sintoma. Além disso, a lactose não absorvida resulta em um importante substrato para a flora bacteriana do intestino grosso. As bactérias aí prevalentes metabolizam a lactose produzindo ácidos graxos voláteis, os quais provocam uma diminuição do pH fecal, tornando-o ácido (menor que 6), e gases (metano, dióxido de carbono e hidrogênio), os quais causam flatulência.

Critérios diagnósticos para intolerância à Lactose

A obtenção de uma história clínica bastante detalhada, geralmente, permite levantar fortes suspeitas da existência de intolerância à lactose, a qual pode ser confirmada, na maioria das vezes, com a eliminação de todas as fontes alimentares da dieta contendo o substrato. No entanto, quando se deseja obter uma confirmação diagnóstica mais acurada, de uma suposta intolerância à lactose, é necessário a realização de uma investigação laboratorial adequada.

A hipolactasia pode ser diagnosticada por métodos diretos, como a biópsia jejunal, que consiste num diagnóstico definitivo, porém invasivo, ou por métodos indiretos, tais como a avaliação de sinais e sintomas clínicos após a ingestão de lactose, testes de análises fecais (determinação do pH fecal e pesquisa de substâncias redutoras nas fezes) e teste de tolerância à lactose, nos quais se destacam o teste sanguíneo e o teste do hidrogênio no ar expirado.

O teste do hidrogênio no ar expirado é uma técnica que vem sendo utilizada cada vez mais freqüentemente na prática clínica e em pesquisas. Trata-se de um método laboratorial não invasivo confiável e preciso para a avaliação da absorção de carboidratos e caracterização de sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado. Para que se obtenha um resultado fidedigno é necessário que o paciente esteja em jejum por ao menos seis horas e, extremamente importante, que o mesmo tenha feito adequada higiene bucal para não falsear o resultado.

O teste é realizado pela administração de uma quantidade normatizada de lactose (2 gramas/ kg de peso, até no máximo 25 gramas, equivalente à quantidade de lactose presente em 2 copos de leite) diluída em solução aquosa a 10%. As amostras de ar expirado devem ser coletadas em jejum, antes da ingestão de lactose, e a cada 30 minutos durante um período de 3 horas após a ingestão da mesma. Uma elevação da concentração de hidrogênio no ar expirado acima de 20 partes por milhão (PPM) comparada ao valor de jejum, em qualquer tempo durante as coletas obtidas das amostras de ar, caracteriza má absorção de lactose. Alguns fatores podem produzir resultados falso-negativos ou falso-positivos, e, dentre estes últimos se destacam a coexistência de sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado (neste caso, o pico de hidrogênio no ar expirado ocorre precocemente, dentro da primeira hora do teste) e as alterações da motilidade intestinal. Dentre os falso-negativos incluem-se o uso prévio de antibióticos (afeta a flora colônica) e a falta de produção de hidrogênio pela flora bacteriana, o que pode ocorrer em até 15% da população. Caso, concomitantemente à caracterização de má absorção de lactose ou não, o paciente venha apresentar sintomas clínicos compatíveis com a intolerância à lactose, este diagnóstico deve ser levado em consideração.

Tratamento da intolerância à Lactose

O tratamento da intolerância à lactose baseia-se única e exclusivamente na eliminação da lactose da dieta do paciente. No caso dos lactentes deve-se utilizar uma fórmula isenta de lactose e naqueles indivíduos que fazem uso de dieta sólida eliminar da alimentação produtos lácteos, substituindo-os por outros produtos à base de leite, porém com baixíssimas concentrações de lactose, tais como queijos e iogurtes, os quais são ricos em cálcio, apresentam a lactose parcialmente hidrolisada e ainda podem conter Lactobacillus, que auxiliam na fermentação e metabolização da lactose.

A indústria alimentícia colocou no mercado leites que apresentam lactose hidrolisada até 80%, sendo indicados para pacientes com intolerância ao substrato, pois torna a ingestão tolerável. A substituição do leite por produtos à base de soja também é de valia, podendo ser utilizados como fonte de carboidratos, desde que o paciente se adapte ao sabor. Nos pacientes hipolactásicos, a tolerância aos iogurtes deve-se a uma pequena atividade da galactosidase presente nos mesmos, que fragmenta, no duodeno, a lactose contida no iogurte.

A Academia Americana de Pediatria (AAP), considerando o alto valor nutricional do leite para crianças em crescimento, afirma que a maioria das crianças americanas menores de 10 anos, independentemente do histórico familiar, pode digerir quantidades razoáveis de leite, e, portanto, recomenda que cerca de 240 mL de leite devem ser oferecidos diariamente, posto que a intolerância a 240 mL de leite é rara, mesmo entre os adolescentes.

Considerações finais

O papel do leite na alimentação humana está bem estabelecido e tem impacto determinante na sobrevivência da espécie, particularmente durante o período de lactente. Contudo, a prevalência de má absorção e/ou intolerância à lactose é bastante elevada e pode alcançar até 75% da população mundial. Indivíduos que apresentam a deficiência de lactase ontogeneticamente determinada, a qual costuma se instalar gradualmente ao longo da existência, a partir do 5º ano de vida, mesmo assim tem a possibilidade de ingerir certa quantidade de leite, o que irá depender da sua própria capacidade de tolerância.