Constipação intratável
Juliana Ferraz e Ulysses Fagundes Neto
Constipação intestinal é caracterizada pela dificuldade e dor para evacuar com eliminação de fezes endurecidas e ressecadas. Investigações epidemiológicas estimam que 3% de todas as consultas em Pediatria e 25% das avaliações em Gastroenterologia Pediátrica devem-se a queixa de constipação.
A constipação crônica revela-se um grande transtorno para o paciente e seus pais, pois, além dos elevados custos para identificar sua causa e instituir seu respectivo tratamento. Deve-se também levar em consideração os dias de ausência à escola que inevitavelmente ocorrerão.
A causa mais comum de constipação na infância é a retenção fecal funcional sem doença orgânica, porém, quando a constipação se torna um sintoma crônico e grave acarreta consequências psicossociais significativas e de grande impacto na qualidade de vida do paciente.
Na Tabela 1 estão apresentados os critérios de Roma III para o diagnóstico da constipação funcional.
Na Tabela 2 estão descritos os principais fatores etiológicos da constipação crônica.
Na Tabela 3 estão descritas as propostas de abordagem diagnóstica da constipação pela Sociedade Norte-americana de Gastroenterologia Pediátrica.
No que diz respeito à constipação intratável deve-se levar em consideração alguns fatores etiológicos, a saber: Dismotilidade colônica, Distúrbios funcionais, Anormalidades do assoalho pélvico, Aganglionose de segmento ultra-curto e Distúrbios comportamentais.
AGANGLIONOSE DE SEGMENTO ULTRA-CURTO
Geralmente apresenta início mais tardio, usualmente sem história de escape fecal ou comportamento de retenção. A patogênese e a fisiopatologia exata ainda não estão totalmente compreendidas, mas anormalidades de inervação intramusculares e da junção neuromuscular parecem ser responsáveis pela disfunção motora anal.
O exame da Manometria anorretal revela relaxamento incompleto do esfíncter anal interno e a biópsia retal pode mostrar células aganglionares.
TRÂNSITO COLÔNICO LENTO
Neste caso o problema está associado com diminuição da substância P, a qual normalmente está presente na inervação do músculo circular do cólon. Vale ressaltar que a diminuição da substancia P é mais comum em mulheres. Um estudo avaliando 78 crianças com constipação intratável revelou que a substância P encontrava-se reduzida em 10/26 (40%) meninas, mas apenas em 11/52 (20%) meninos. O melhor método para caracterizar trânsito colônico lento é a utilização de marcadores radiopacos.
ANORMALIDADES DO ASSOALHO PÉLVICO
O mecanismo pelo qual as lesões da medula espinal produzem constipação é desconhecido, porém sabe-se que danos ao nervo vago acarretam retardo do trânsito do cólon direito. Por outro lado, quando a lesão ocorre acima dos nervos sacrais observa-se trânsito anormal do cólon esquerdo. Nestas circunstâncias ocorre uma falta de sensibilidade à distensão retal que geralmente vem acompanhada de história de incontinência urinária combinada com a incontinência fecal.
Na Tabela 4 abaixo está descrita a evolução natural da constipação intratável que teve seu início a partir de um quadro de constipação funcional de longa duração.
DIAGNÓSTICO
Uma avaliação completa é fundamental para o planejamento da terapia apropriada da constipação intratável. Devem ser realizados exames de acordo com os sintomas da criança e para tal é necessário seguir determinados preceitos, tais como, descartar obstrução mecânica, avaliar a dilatação intestinal, realizar a manometria anorretal e o estudo radiológico contrastado do trânsito intestinal. No entanto, apesar da avaliação completa, muitos casos permanecem como sendo de causa idiopática.
ESTUDO DO TRÂNSITO COLÔNICO
Trata-se de um procedimento benéfico para as crianças com constipação crônica resistente ao tratamento e permite diferenciar qual o tipo da constipação, com a qual se está lidando, pois esta pode ser devida aos seguintes fatores:
- Atraso de trânsito segmentar
- Atraso de trânsito pancolônico
- Constipação com transito normal
O atraso do trânsito está presente em cerca de 60% das crianças com constipação intratável, sendo que 13% dos que apresentam este tipo de atraso têm disfunção pélvica.
MANOMETRIA ANORRETAL
Trata-se de um procedimento extremamente valioso para avaliar a fisiologia anorretal, a dinâmica evacuatória e também auxiliar no diagnóstico diferencial de doenças orgânicas. Além destas vantagens a manometria se presta a orientar a abordagem terapêutica, pois a ausência do Reflexo Inibidor Anal caracteriza a existência da Doença de Hirschsprung. A constatação de um alto limiar sensorial para a vontade de defecar indica a existência de Dismotilidade, e a presença de um relaxamento incompleto do esfíncter anal interno define a aganglionose de segmento ultra-curto. A Figura 1 mostra um estudo da manometria ano-retal normal.
MANOMETRIA COLÔNICA
Este procedimento serve para a diferenciação de causas de constipação intratável na infância e pode orientar a abordagem cirúrgica, mostrando o comprimento do segmento do cólon afetado.
A Manometria Colônica se constitui em um biomarcador sensível e específico de neuropatia colônica para caracterizar a constipação intratável devido a trânsito lento:
- 100% de sensibilidade,
- 86 % de especificidade,
- 92 % de Valor Preditivo Positivo,
- 100 % de Valor Preditivo Negativo
A Figura 2 exemplifica os diferentes níveis de alteração da manometria colônica.
A Figura 3 mostra as diferenças entre manometria colônica normal e aquela devida a trânsito colônico lento.
RESSONÂNCIA MAGNÉTICA NUCLEAR (RMN) DA COLUNA
Aproximadamente 3% dos pacientes com distúrbios da defecação e exame neurológico normal, apresentam anormalidades da coluna lombo-sacral identificados pela RNM.
Investigação realizada em 88 pacientes, com constipação intratável que se submeteram à RNM de coluna, evidenciou que em 8 (9%) deles havia anormalidades na medula espinhal, sendo que nenhum dos pacientes apresentou exame neurológico alterado.
Neste grupo de estudo 25% dos pacientes tinham um histórico de encoprese e 37,5% referiam história de enurese, porém todos os 8 pacientes tinham radiografias simples lombossacrais normais.
A pressão anal em repouso medido por manometria ano-retal mostrou-se normal, e 7 dos 8 casos foram reparados cirurgicamente.
TRATAMENTO
O tratamento da constipação intratável constitui um desafio para o médico e para a família, posto que sua resolução é extremamente difícil e muitas vezes frustrante.
A indicação cirúrgica deve ser proposta nas crianças com constipação intratável quando as etiologias orgânicas são conhecidas, tais como, a aganglionose colônica e as malformações anorretais.
Recentemente, têm sido apresentados dados sobre o uso benéfico de enemas anterógrados via cecostomia nos casos de constipação refratária grave em crianças neurologicamente normais, sem causa orgânica conhecida para sua sintomatologia.
As opções de tratamento para crianças com constipação por trânsito colônico lento são limitadas, e nesta circunstância deve-se ponderar a indicação cirúrgica quando o tratamento clássico com laxantes fracassar.
As opções de tratamento não convencional são:
- Estimulação Elétrica Transcutânea não-invasiva
- Miectomia anorretal,
- Ressecção colônica parcial ou total,
- Colostomia ou ileostomia e enemas anterógrados do cólon.
Deve-se ter em mente que as taxas de insucesso podem ser significativas e incluem:
- sintomas persistentes, com dor e distensão abdominal
- morbidade pós-operatória
ESTIMULAÇÃO ELÉTRICA TRANSCUTÂNIA NÃO INVASIVA
O equipamento de estimulação elétrica transcutânea não invasivo é composto dos seguintes instrumentos:
- 4 eletrodos de superfície (2 abdominais e 2 paravertebrais) que produzem 2 correntes sinusoidais que passam pelo corpo.
- Embora a sua aplicação inicial tenha sido proposta como tratamento da instabilidade do músculo detrusor, um estudo piloto avaliou seu potencial como uma modalidade de tratamento para crianças com constipação por trânsito lento o qual revelou resultados promissores na melhora da função do cólon.
- Constatou-se que depois de apenas um período de tratamento de curta duração (12 sessões de 4 semanas), houve uma melhora significativa na qualidade de vida tanto nos aspectos físicos como psicossociais.
MIECTOMIA ANO-RETAL
- Este procedimento foi abandonado, posto que apresentou alívio dos sintomas em apenas 30 % dos pacientes, e, em contrapartida, resultou em taxa de 11% de incontinência fecal.
COLECTOMIA SUBTOTAL
- A colectomia subtotal com anastomose ileorretal tornou-se o tratamento de escolha na população adulta com constipação por trânsito intestinal lento. No entanto, as taxas de sucesso relatadas são altamente variáveis, e uma significativa porcentagem de pacientes desenvolve constipação recorrente e complicações pós-operatórias.
PROCTECTOMIA
- Realizada em um pequeno número de pacientes constipados com bons resultados.
COLECTOMIAS SEGMENTARES
- Estes procedimentos têm sido utilizados para limitar a morbidade de ressecções mais extensas, porém, com resultados altamente variáveis.
- Sucesso (em adultos): Meta-análise apenas 48%; Outros trabalhos até 85 %.
- Levitt e Pena realizaram ressecção do sigmóide com anastomose colorretal em crianças, e relataram que 10% delas não necessitaram de laxantes após a ressecção, ao passo que o restante diminuiu o uso de laxantes em diferentes graus.
DESVIO COLÔNICO (OSTOMIAS)
- Este tipo de procedimento permite que o resto do cólon disfuncionalizado, distal à ostomia, volte ao calibre normal ao longo do tempo possibilitando o potencial retorno da motilidade do cólon. Além disso, a ausência de um esfíncter de alta pressão também permite teoricamente que ocorra o relaxamento do intestino proximal à ostomia.
ENEMA ANTERÓGRADO DO COLON (EAC)
- Este procedimento foi descrito em 1990, como um método de infusão de soluções de limpeza no cólon proximal que proporciona evacuações com intervalos regulares e evita o sofrimento emocional associado a enemas retrógrados repetidos. O botão da cecostomia é instalado por via laparoscópica.
- Este tipo de ação é recomendado nos pacientes sem inércia colônica e com boa resposta ao uso de bisacodil, e pode levar à normalização da motilidade: reduzidos e descontinuados.
- A taxa de sucesso varia entre 40 % e 81 % dos pacientes.
- Youssef et al relataram que em 41,7% dos casos o EAC pode ter sido suspenso após uma média de 14,6 meses.
- Escores de qualidade de vida demonstraram maior satisfação (médico, paciente e família), tanto em termos de função psicossocial como gastrointestinal quando comparados a outros procedimentos cirúrgicos.
- Esteticamente, o botão da cecostomia é facilmente coberto por uma camisa, e as crianças podem administrar os enemas anterógrados independentemente à medida que se tornam autoconfiantes.
APENDICOSTOMIA
- O apêndice, via laparoscópica ou por abordagem aberta, é exteriorizado como um estoma e atua como uma via para o cólon através da qual os enemas anterógrados podem ser executados.
- O estado psicológico e a qualidade de vida dos pacientes com tratamento comportamental para constipação intratável tornam-se significativamente mais favoráveis.
- Foram estudados 31 pacientes (idade média de 36 anos) que receberam tratamento comportamental para a constipação intratável idiopática. Deste grupo 22 pacientes sentiram alívio subjetivo da sintomatologia. Ocorreu melhoria dos seguintes parâmetros avaliados: depressão, ansiedade, sintomas somáticos, estado geral de saúde e vitalidade.
CONCLUSÃO
Como se pode depreender do que foi exposto a constipação intratável acarreta enormes transtornos físicos, biopsicossociais e também afeta de forma intensa a qualidade de vida dos pacientes. Urge que soluções mais eficazes estejam ao alcance dos pacientes para minimizar os inúmeros desconfortos por eles enfrentados bem como aos seus familiares.