Dispepsia Funcional: Diagnóstico e Tratamento
por Marcio Miasato & Ulysses Fagundes Neto
Introdução
Transtornos funcionais do trato gastrointestinal são um conjunto de sinais e/ou sintomas referidos pelos pacientes tais como dor, náusea, vômitos, distensão abdominal, diarreia, constipação, dificuldade da passagem dos alimentos ou das fezes pelo trato gastrointestinal.
Esses transtornos são descritos como funcionais devido a não terem uma causa plausível de explicação ou tratamento efetivo. Frequentemente estão associados a fatores psicológicos, sociais, ambientais e com impacto negativo na qualidade de vida e na rotina diária dos pacientes. Para que se possa rotular estas manifestações clínicas como “transtornos funcionais” devem ser excluídas causas orgânicas dos sintomas referidos pelo paciente, tais como, processo inflamatório, infecção, neoplasia e/ou anormalidades estruturais.
Doenças funcionais do trato gastrointestinal
Muitos médicos não se sentem confortáveis em estabelecer um diagnóstico definitivo de transtorno funcional do trato gastrointestinal porque o treinamento profissional, de uma maneira geral, é prioritariamente voltado para a investigação e a respectiva caracterização de enfermidades de fundo orgânico.
Por outro lado, muitas vezes o paciente também não se satisfaz com um diagnóstico desprovido de uma comprovada causa orgânica reconhecida, o que também acarreta a necessidade da realização de uma exaustiva investigação laboratorial, na maioria dos casos.
Pesquisa realizada com 704 médicos gastroenterologistas pela associação médica americana (Gastroenterology 1987) revelou que o laudo mais comumente relatado pelo responsável pela investigação laboratorial, para excluir patologia orgânica, nos pacientes portadores dos “transtornos funcionais do trato gastrointestinal” (TFGI) foi “sem anormalidades estruturais” (patologia/radiologia, ou causas infecciosas/metabólicas) (Figura 1).
Predisposição genética
Fatores genéticos podem predispor indivíduos a desenvolver TFGI e os fatores ambientais podem contribuir para a expressão fenotípica dessas condições.
Ambiente familiar
A ocorrência na mesma família de vários indivíduos com TFGI pode não ser apenas de caráter genético, mas também pode decorrer do aprendizado que as crianças adquirem com os seus pais.
Fatores psicossociais
TFGI podem acarretar consequências psicossociais. Estresse emocionais exacerbam sintomas gastrointestinais. É sabido que fatores psicológicos modificam a experiência que o paciente tem sobre a sua patologia e sobre o cuidado com a sua saúde. Na Figura 2 abaixo encontra-se esquematizado o eixo sistema nervoso central-trato digestivo responsável pelas manifestações clínicas decorrentes das situações de estresse vivenciadas pelos pacientes.
Motilidade anormal
Pessoas saudáveis com quadros agudos de estresse podem apresentar aumento da motilidade esofágica, gástrica e intestinal. Os pacientes que sofrem de TFGI demonstram resposta excessivamente aumentada da motilidade, e essa resposta motora está associada aos sintomas intestinais, particularmente diarreia e vômitos, mas não explica a dor crônica/recorrente abdominal.
Hipersensibilidade Visceral
Acredita-se que haja uma hipersensibilidade dos receptores da mucosa intestinal e do plexo mioentérico, associada a possível aumento da atividade da serotonina, que, por sua vez, aumentaria a excitabilidade da via central sensitiva amplificando a sensação de dor. Na Figura 3 abaixo estão elencados os principais fatores até o presente conhecidos envolvidos na gênese da dor abdominal sem causa orgânica definida.
Na Tabela 1, abaixo, estão discriminadas as principais causas dos TFGI, segundo os critérios de Roma III.
Tabela 1 – Transtornos Funcionais Gastrointestinais – Critérios de Roma III (Gastroenterology 1996)
- Esofágicos
- Queimação
- Dor torácica de presumível origem esofágica
- Disfagia
- “Globus”
- Gastroduodenais
- Dispepsia
- Síndrome do estresse pós-prandial
- Síndrome da dor epigástrica
- DispepsiaEructação
- Aerofagia
- Eructação excessiva inespecífica
- Náuseas e Vômitos
- Náusea Crônica Idiopática
- Síndrome do Vômito Cíclico
- Síndrome da Ruminação
- Dispepsia
- Digestivos
- Síndrome do Intestino Irritável
- Flatulência
- Constipação
- Diarreia
- Síndrome da Dor Abdominal
- Neonatos e Lactentes
- Regurgitação
- Síndrome da Ruminação
- Síndrome dos Vômitos Cíclicos
- Cólica do Lactente
- Diarreia
- Dor para evacuar
- Constipação
- Escolares e Adolescentes
- Vômitos e Aerofagia
- Síndrome da Ruminação do Adolescente
- Síndrome do Vômitos Cíclicos
- Aerofagia
- Dor Abdominal
- Dispepsia
- Síndrome do Intestino Irritável
- Enxaqueca Abdominal
- Síndrome da Dor Abdominal
- Constipação e Incontinência
- Constipação
- Incontinência Fecal não retentora
- Vômitos e Aerofagia
Dispepsia Funcional
Dispepsia é definida como um distúrbio da digestão caracterizada por um conjunto de sintomas relacionados ao trato gastrointestinal superior (dor, queimação ou desconforto na região superior do abdômen), que pode estar associado à saciedade precoce, empachamento pós-prandial, náuseas, vômitos, sensação de distensão abdominal, cujo aparecimento ou agravamento pode ou não estar relacionado à alimentação ou ao estresse.
Trata-se de transtorno heterogêneo caracterizado por períodos de abrandamentos e exacerbações. O diagnóstico é confirmado quando uma investigação clínica e laboratorial completa do paciente não permite identificar uma causa orgânica reconhecida para os sintomas apresentados.
A dispepsia funcional pode ser caracterizada por sensação de dor ou desconforto no abdômen superior, além de plenitude, saciedade precoce, distensão abdominal, náusea ou vômitos.
Estudos realizados em diversas comunidades e em escolas revelaram que a prevalência da dispepsia tem variado entre 3,5% e 27% dos indivíduos.
Considerando-se a idade pediátrica e utilizando-se os critérios de Roma II a prevalência foi de 3.5% em crianças (idade média 52 meses) observada por pediatras gerais na Itália e entre 12,5-15,9% em crianças com idade entre 4- 18 anos em clínicos da América do Norte.
Crianças de menor idade podem reclamar de dor periumbilical e, também, podem apresentar dor noturna que interrompe o sono, e inclusive pode ocorrer alguma associação da dor com a ingestão de determinados alimentos.
Em lactentes as manifestações podem incluir irritabilidade, recusa alimentar e excessivos episódios de regurgitação/vômitos.
Dispepsia Funcional: Diagnóstico
De acordo com os critérios de Roma II há a indicação de se realizar a endoscopia digestiva alta (EDA) para excluir a possibilidade da existência de lesões orgânicas que justificariam o quadro dispéptico; por outro lado, considerando-se os critérios de Roma III o comitê de experts eliminou a realização mandatória da EDA para a caracterização do diagnóstico de dispepsia funcional.
Está bem estabelecido que em crianças a probabilidade de se encontrar achados anormais macro e/ou microscópicos que justifiquem os sintomas dispépticos é muito menor que em adultos.
Nos critérios de Roma III foram excluídos os subtipos de dispepsia funcional para as crianças (úlcera-símile e dismotilidade-símile), pois crianças pequenas não se encaixam nessa classificação.
A potencial ação do Helicobacter pylori na dispepsia funcional continua incerta. Entretanto, vários artigos são dúbios quanto à necessidade de se realizar o tratamento do H. pylori na dispepsia funcional, quando este se revelar presente na investigação laboratorial.
Um estudo acompanhou durante 1 ano pacientes portadores de H. pylori quanto aos sintomas e a qualidade de vida. Esses pacientes foram tratados com terapia tríplice de erradicação da bactéria e comparados a grupo controle que utilizou apenas tratamento com omeprazol por 3 meses. Nesta pesquisa, como se pode observar nos quadros abaixo, não houve diferenças significativas entre os 2 grupos estudados em relação com os parâmetros avaliados.
Tratamento
Os protetores de barreira da mucosa, como por exemplo, as prostaglandinas e sucralfato são pouco utilizados na doença ácido-péptica da criança.
Os agentes procinéticos (metoclopramida, eritromicina, domperidona) não apresentam quaisquer evidências científicas que suportem seu uso em pediatria em crianças com dispepsia funcional.
Uma metanalise envolvendo 11 estudos randomizados duplo-cego com uso de antidepressivos x placebo, com os seguintes medicamentos: amitriptilina (3 estudos), clomiprimina (1), desipramina(2), doxepin (1), trimipramina (1), mianserin (2), revelou um odds ratio 4.2 (com 95% intervalo de confiança) em relação ao uso de placebo, com os pacientes apresentando alívio do quadro de dor (parâmetro clinico de avaliação da queixa dispéptica).
Uma outra metanalise enfatiza que novos estudos têm que ser desenvolvidos para a avaliação de forma mais detalhada quanto à presença de quadro depressivo em pacientes com queixa de dor crônica.
Em conclusão, até o presente momento não se encontra disponível algum medicamento que tenha se mostrado comprovadamente eficaz para aliviar os sintomas dos pacientes que apresentam queixa de dispepsia funcional. Cada caso deve ser criteriosamente analisado pelo médico assistente para que se possa propor a conduta clínica, medicamentosa ou não, mais apropriada no sentido de amenizar e se possível debelar com sucesso o sofrimento do paciente.