Gastrites
por Milena R. Macitelli & Ulysses Fagundes Neto
Introdução
Os primeiros trabalhos sobre gastrite foram realizados em material de necropsia e, posteriormente, em material obtido em ato cirúrgico. O resultado dessas observações foi sempre contestado, em razão do tipo de material analisado. A contestação deveu-se a dois fatores principais, a saber: 1- o material poderia estar prejudicado pelo fenômeno de autólise; 2- os materiais provinham de pacientes com afecções gástricas de diferentes etiologias.
A partir da década de 1940 com a introdução da biópsia per oral, e posteriormente, pela endoscopia com biópsia dirigida, tornou-se possível a realização de inúmeras pesquisas, cujas conclusões passaram a ser contestadas ou aceitas com restrição. O principal motivo destas controvérsias residia na falta de correlação entre os achados endoscópicos X achados histopatológicos X manifestações clínicas. Como não se conheciam os agentes etiológicos e/ou a história natural da doença em questão, os achados da mucosa gástrica eram, de uma maneira geral, considerados como normais ou consequência do processo natural do envelhecimento.
O uso progressivo do termo gastrite e o mistério criado ao seu redor provocaram a descaracterização da doença como entidade nosológica. A utilização abusiva pelos patologistas dos termos: gastrite aguda, gastrite crônica e gastrite superficial, extrapolados para conceitos clínicos geraram interpretações equivocadas quanto ao menor ou maior grau de gravidade e quanto a evolução da doença.
Gastrite, na verdade, faz parte do conjunto das doenças pépticas e é uma patologia de relevante importância por diversos motivos. A doença, juntamente com a úlcera péptica, possui elevada morbidade e normalmente é passível de tratamento. Além disto, algumas formas de gastrite crônica e grave podem destruir elementos da mucosa gástrica, resultando em gastrite atrófica e metaplasia intestinal, que podem ser lesões pré-neoplásicas.
Assim como outras doenças na infância, a gastrite pode acarretar, a longo prazo, prejuízos de diferentes intensidades para o paciente. Vale ressaltar que apesar da gastrite e da úlcera péptica serem entidades clínicas estudadas separadamente, muitas vezes fazem parte de uma doença de continuidade.
História
A primeira grande descoberta no campo das doenças gástricas foi a descrição de câncer gástrico pelos persas em 1000 DC. No mesmo período, descrições de doenças gástricas não-neoplásicas, principalmente gastrite, eram subjetivas devido às limitações da época. A inflamação da mucosa gástrica foi nomeada pela primeira vez como “gastrite” pelo médico alemão George Ernst Stahl em 1728.
Secreções gástricas
O estômago secreta inúmeras substâncias que são de fundamental importância para o funcionamento normal do trato digestivo, a saber (Figuras 1 e 2):
- Água
- Ácido
- Bicarbonato
- Eletrólitos: Cl-, Na+ e K+
- Mucinas
- Enzimas que são ativadas no pH ácido (pepsinas e lipase)
- Fator intrínseco das células parietais
Definição
Gastrite é uma lesão benigna decorrente da quebra da barreira mucosa, acarretando alterações macro e microscópicas da mucosa gástrica, associadas a uma resposta inflamatória. A mucosa gástrica possui células que produzem ácidos e enzimas (que auxiliam na quebra do alimento e digestão) e muco (que protege a mucosa do ácido). O desequilíbrio entre as forças defensivas e agressivas da barreira mucosa é responsável pela formação das lesões. Quando a mucosa gástrica está inflamada, produz menos ácido, enzimas e muco.
Mecanismos de defesa
O estômago possui uma série de mecanismos de defesa contra as agressões do meio ambiente com a função de proporcionar as condições ideais para a ocorrência dos processos de digestão e absorção que irão se dar no intestino delgado. Os principais mecanismos de defesa estão a seguir discriminados:
Pré-epiteliais: Elevadas concentrações de glicoproteina da mucosa (muco) e bicarbonato, formam uma camada surfactante (hidrófoba), denominada BARREIRA MUCOSA – a qual fornece proteção contra fatores agressivos na cavidade gástrica (Figura 3).
Muco: secretado pelas células mucosas superficiais, é uma glicoproteina que recobre a superfície epitelial como um gel espesso, serve como uma camada de água imóvel, que lentifica a difusão retrógrada dos íons de hidrogênio em aproximadamente 4X.
O bicarbonato (íons) secretado pelas células mucosas superficiais, neutraliza os ácidos, mantendo normalmente um gradiente de pH de 1 para 2 no lúmen e de 6 para 7 na superfície epitelial. Este gradiente de valores do pH é extremamente importante porque é o responsável pela atividade péptica. A pepsina é inativada em pH 5 e irreversivelmente inativada em pH 7.
Epiteliais: junções firmes entre as células, trocas iônicas intracelulares e capacidade de regeneração epitelial.
A regeneração da mucosa ocorre com a recuperação de áreas descobertas, pela migração de células mucosas da superfície ao longo da membrana basal, de regiões mais profundas para substituir as células danificadas, logo após a lesão.
A divisão e a regeneração celulares ocorrem depois de alguns dias, para produzir novas células epiteliais a partir de células-tronco.
Pós-epiteliais: fluxo sanguíneo e síntese de prostaglandinas. O fluxo sanguíneo mucoso distribui oxigênio, nutrientes e bicarbonato e remove o ácido retrodifundido. Se o fluxo sanguíneo for reduzido em mais de 50%, a mucosa se torna mais vulnerável à lesão.
As prostaglandinas produzidas localmente têm um papel importante na defesa pois inibem a secreção ácida, estimulam a secreção de muco e bicarbonato e aumentam o fluxo sanguíneo e a renovação celular.
Anatomia da mucosa gástrica
“Anatomia endoscópica”
O corpo gástrico é caracterizado por um pregueado mucoso espesso, que se estende distalmente até a incisura na pequena curvatura. O fundo possui mucosa semelhante à do corpo. O antro representa o final do pregueado mucoso até o piloro.
Apesar de diferentes locais anatômicos corresponderem a diferentes zonas histológicas, existem áreas de transição, ou seja, mucosa de transição, tais como: antro-corpo (na incisura) e região da cárdia.
Manifestações clínicas
As manifestações clínicas dos diferentes tipos de gastrite costumam ser muito variáveis e irão depender de uma série de fatores, tais como por exemplo a etiologia, a gravidade e a extensão da lesão.
Alguns estudos recentes têm demonstrado a associação de dor abdominal crônica e gastrite por H. pylori. Entretanto, na ausência de ulceração, a gastrite crônica associada a infecção por H. pylori é improvável que seja a causa da dor abdominal recorrente em crianças.
Crianças de menor idade com distúrbios pépticos podem apresentar vômitos, irritabilidade, inapetência e ocasionalmente perda de peso.
Crianças acima dos 10 anos de idade apresentam sintomas mais parecidos aos dos adultos: dor epigástrica, náuseas, vômitos, sensação de plenitude gástrica, anemia e perda de peso.
Sintomas de franca obstrução gástrica são incomuns em crianças.
Diagnóstico
O diagnóstico baseia-se essencialmente na histologia, cuja avaliação se realiza em material obtido por meio de biópsia do estômago, e não através dos possíveis achados endoscópicos, pois estes podem ser muito variáveis.
A gastrite em diversas circunstancias é diagnosticada através de biópsias da mucosa gástrica cuja aparência macroscopia ao exame endoscópico não evidencia quaisquer anomalias.
Endoscopia Digestiva Alta e Biópsia Gástrica
A partir do momento que a endoscopia for indicada, é importante que o endoscopista se esforce para maximizar o potencial diagnóstico do procedimento. Achados endoscópicos e histológicos devem ser sempre interpretados em combinação com a história clínica obtida e os achados do exame físico.
Patologista experiente com conhecimento especifico em doenças gastrointestinais representa o pilar central de todo o processo diagnóstico. Em Pediatria, frequentemente, há uma tendência em fornecer o diagnóstico de gastrite baseado no infiltrado celular, o qual pode estar marginalmente aumentado e muitas vezes pode ser explicado por uma infecção viral recente.
Recomenda-se fortemente que o endoscopista e o gastroenterologista revisem a histologia do paciente com o patologista, pois este procedimento possibilita estabelecer uma excelente correlação entre os sintomas referidos pelo paciente e os achados histopatológicos.
Inflamação crônica não-específica é um achado comum e, normalmente, de pouca importância no manejo dos pacientes, entretanto, a exclusão de outras causas possa ser útil. Há alguns padrões de normalidade de infiltrado celular na mucosa gástrica de crianças, baseados em biópsias “normais” em estudos retrospectivos anteriores.
Algumas drogas podem causar alterações endoscópicas e histopatológicas importantes, tais como:
- Compostos de bismuto
- Antibióticos
- Anti-inflamatórios não esteroides
- Ferro administrado por via oral
- Corticosteroides orais/inalatórios
- Agentes quimioterápicos
As drogas utilizadas pelos pacientes devem ser suspensas pelo menos 2 semanas antes do procedimento para evitar que achados endoscópicos sejam mascarados.
Achados endoscópicos
Recomenda-se que o endoscopista documente apenas o que for realmente visualizado, evitando o uso de jargões envolvendo as terminações em “ite”, como por exemplo, ao invés de relatar gastrite é mais apropriado descrever desde eritema a ulceração da mucosa. No caso de a mucosa apresentar-se avermelhada deve ser documentada como enantematosa ou eritematosa, com variações desde leve, moderada, intensa até hemorrágica.
A presença de nodularidade antral pode indicar a ocorrência de gastrite por H. pylori (passada ou atual). Os nódulos podem durar de meses a anos após a erradicação do H. pylori e a resolução da gastrite e da inflamação podem não estar presentes na biópsia.
As lesões encontradas na mucosa gástrica podem ser descritas como superficiais ou profundas, mas é importante diferenciar a profundidade das mesmas, a saber:
Erosão – lesão da mucosa que não penetra a muscular da mucosa. As erosões usualmente são múltiplas, têm bases esbranquiçadas e cada uma é delimitada por um anel de eritema. Quando uma erosão apresentou sangramento recente, sua base torna-se negra.
Úlcera – se estende à muscular e à submucosa. As úlceras são lesões mais profundas e quando profundas podem ter bordas laminadas.
A presença de hemorragia dá uma aparência à mucosa de cor vermelha brilhante em placas ou petequeias discretas. Embora alguns endoscopistas relatem “hemorragia da submucosa”, a endoscopia não permite a visualização além da muscular da mucosa. Portanto, o termo hemorragia subepitelial é o mais adequado. Outros termos para hemorragia subepitelial também são utilizados, tais como: gastrite aguda, gastrite hemorrágica e erosão hemorrágica.
Quando as erosões ou ulceras são observadas, alguns aspectos das mesmas devem ser caracterizados:
- Local anatômico do estômago ou duodeno
- Tamanho, forma, quantidade
- Profundidade (superficial ou profunda)
- Natureza da borda (elevada ou laminada)
- Presença de vasos ou coágulos
- Sangramento ativo
- Nódulos ou pseudopólipos podem ocorrer em doenças como: gastrite eosinofílica, gastrite por Citomegalovirus, gastrite, Doença de Crohn.
Amostras de biópsia
Apesar do antro ser o local de maior incidência de anormalidades histológicas de diversas doenças em crianças, as biópsias devem ser obtidas de diferentes zonas topográficas do estômago. O número e a localização da biópsia dependem da doença suspeitada e dos achados endoscópicos. Mesmo quando a mucosa aparenta ser normal, biópsias devem ser obtidas (cárdia na suspeita de infecção por H. pylori, doença do refluxo gastresofágico ou linfoma MALT).
O tamanho das biópsias é importante e deve seguir a seguinte orientação:
- Lactentes acima de 2-3 meses: canal de biópsia de 2.8mm é adequado
- Crianças a partir de 5-6 anos de idade: fórceps “jumbo” oferecem 2 a 3 vezes mais mucosa.
Em alguns casos, a ressecção endoscópica da mucosa ou biópsias cirúrgicas podem ser indicadas, como por exemplo nas doenças infiltrativas, tais como, câncer, linfomas, leiomioma/leiomiossarcomas ou polipose gástrica.
Abordagem histológica
Há muitas maneiras de abordar e descrever histologicamente ou classificar a gastrite. A quantidade de classificações para uma mesma doença demonstra claramente as controvérsias existentes na literatura. A conturbada nomenclatura de várias classificações dificultou a compreensão da doença durante diversos anos.
A classificação de Sidney é aceita em adultos, porém tem pequena aplicabilidade em crianças (Quadro 1). Por este motivo gastroenterologistas pediátricos devem ter como foco obter uma amostra significativa de material de biópsia e, além disso, a análise dos achados histológicos deve ser realizada por patologista com larga experiência em patologias do trato digestivo.
Para a abordagem das lesões histológicas é tradicional descrever o tipo de célula presente e sua respectiva distribuição na mucosa de um determinado órgão. O processo inflamatório obervado pode ser do tipo “agudo” ou “ativo” quando há presença de neutrófilos. A presença de qualquer quantidade de neutrófilos é anormal, indicando inflamação aguda ou ativa.
Por outro lado, deve ser considerado “crônico” quando estão presentes células arredondadas, tais como, linfócitos, plasmócitos etc. No processo crônico associado à atividade podem ser encontradas células de ambas as características anteriormente mencionadas.
A presença de folículos linfoides, em crianças, é altamente sugestiva de infecção por H. pylori. Caso os folículos linfóides e a inflamação estiverem presentes na ausência do H. pylori, é provável que o microrganismo tenha sido eliminado. Ainda na infecção por H. pylori, os folículos linfoides podem deixar de serem encontrados se o tamanho ou número de biópsias forem insuficientes.
Em associação ao infiltrado celular, deve-se também descrever a extensão e a profundidade da lesão, bem como se a mesma está localizada de forma focal ou difusa no material de biópsia analisado.
Atrofia e metaplasia intestinal
Atrofia gástrica (“gastrite atrófica”) é uma importante consequência de gastrite. É considerada uma lesão pré-neoplásica quando um certo tipo de metaplasia intestinal desenvolve-se na mucosa atrófica. Apesar de a infecção por H. pylori ser, majoritariamente, a principal causa de gastrite atrófica, esta pode ser o resultado de qualquer processo crônico grave à mucosa gástrica, como por exemplo, gastrite varioliforme e em doenças autoimunes com acometimento gástrico.
A atrofia gástrica típica caracteriza-se por perda glandular, ausência de regeneração e presença de fibrose, com ou sem metaplasia. Gastrite atrófica é uma lesão irregular e pode não ser vista por falha de amostragem (caso não haja material suficiente, ou este não é coletado de locais múltiplos).
É amplamente aceito que a metaplasia intestinal por si só constitui uma forma de gastrite atrófica, mesmo que a perda glandular não seja tão evidente. Deve-se dar a devida atenção ao interpretar “gastrite atrófica” e “metaplasia intestinal”, pois mesmo para alguns especialistas, a perda glandular pode ser subjetiva. Quando há inflamação ativa, células inflamatórias e edema podem “puxar” as glândulas para baixo, dando aparência de atrofia, o que na verdade se constitui em pseudoatrofia.
Estudos realizados no Japão e na Colômbia mostraram que 10% das crianças infectadas por H. pylori apresentavam atrofia gástrica.
Causas de Gastrite
A classificação de gastrite de acordo com a causa subjacente, pode ser útil para se entender a história natural da lesão. No passado classificava-se como erosiva e não erosiva. Atualmente a gastrite deve ser classificada apenas de acordo com sua etiologia (Quadro 2).
Gastrite por H. pylori
- pylori, juntamente com o Streptococcus mutans, agente da cárie dentária, são considerados os patógenos mais comuns das infecções crônicas no ser humano e o agente microbiano mais importante do trato digestório alto. A infecção por H. pylori é a principal causa de gastrite no mundo. A maioria das pessoas com gastrite por H. pylori é assintomática, a não ser que desenvolvam doença ulcerosa, adenocarcinoma ou linfoma.
O H. pylori é uma bactéria espiralada, Gram -, em forma de bastonete, com 3-5 mm de comprimento e 0,5 a 1 mm de largura. Possui potente atividade ureásica, sugerindo a presença dessa enzima pré-formada. Admite-se que o ser humano é o único reservatório natural da bactéria, mas estudos apontam achados de colônias em gatos domésticos. O H. pylori é adaptado para colonizar apenas a mucosa gástrica, sendo raramente observado em áreas de metaplasia intestinal. Quando é observado em outros sítios, como esôfago e duodeno, está localizado nas áreas de metaplasia gástrica ou em áreas de mucosa gástrica ectópica. Em crianças e adultos, normalmente localiza-se na mucosa antral, mas pode estar presente no corpo e na cárdia. Ao chegar ao estômago, a bactéria hidrolisa a ureia, por meio da urease, produzindo amônia e CO2. A amônia funciona como um tampão para os íons de Hidrogênio, criando um ambiente com pH ótimo para a sua sobrevivência. Com a ajuda dos flagelos, que lhe proporcionam uma locomoção helicoidal, a bactéria penetra na barreira mucosa, atinge as proximidades do epitélio gástrico e adere-se às células epiteliais, por meio das adesinas. Então, localiza-se no muco, em contato direto com as células epiteliais ou mesmo dentro dos espaços intracelulares (onde há alta concentração de substâncias nutritivas, pH alto e baixo nível de O2, o que favorece sua reprodução e sua atividade.
Quanto à epidemiologia o H. pylori tem distribuição universal, apresentando prevalência global superior a 50%. Nos países em desenvolvimento, observam-se taxas mais altas de prevalência e a contaminação ocorre em idades mais precoces, pois as condições de saneamento básico precário são favoráveis a disseminação da bactéria. São também fatores de risco para as altas taxas de infecção pelo H. pylori a baixa condição socioeconômica, falta de higiene, situações de promiscuidade e famílias populosas vivendo na mesma casa.
A incidência e a prevalência variam muito dentro e entre os países. No Brasil, estima-se que a prevalência seja a seguinte: 6 a 8 anos: 30%, 10 a 19 anos: 78%, adultos: 82%.
Patogenicidade do H. pylori
Gastrite por H. pylori
O H. pylori induz, tanto em adultos quanto em crianças infectadas, a produção de um infiltrado neutrofílico agudo, seguido de gastrite crônica, geralmente assintomática, sem úlceras, a qual permanece presente na duração da infecção. A infecção aguda pode causar dor epigástrica, náusea, vômitos, halitose e cefaleia. Como consequência precoce da infecção aguda ocorre aumento da secreção ácida gástrica, seguida de acloridria em aproximadamente 1 semana e que pode durar 6 semanas ou mais. A diminuição da secreção ácida gástrica parece estar relacionada ao tempo e ao grau de inflamação da mucosa gástrica.
Infecção crônica
Alguns estudos mostram que a infecção aguda por H. pylori em crianças tendem a desaparecer espontaneamente, o que oposto ao que costuma ocorrer nos adultos. A gastrite crônica é diagnosticada com maior frequência que a aguda. A localização da lesão tem predomínio na região antral, o que acarreta maior risco de úlcera péptica duodenal. Um menor número de pacientes pode desenvolver gastrite atrófica com metaplasia intestinal, o que representa risco posterior de desenvolvimento de úlcera e adenocarcinomas gástricos.
Diversos trabalhos mostram uma prevalência muito variada de gastrite atrófica (4 a 72%), dependendo da metodologia utilizada e da população avaliada. Gastrite crônica assintomática não é indicação para erradicação da bactéria para a maioria dos consensos, mas a gastrite atrófica é considerada indicação relativa.
Diagnóstico
A Endoscopia Digestiva Alta (EDA) com biópsia para estudo histopatológico é indicada para avaliação da criança com suspeita de doença péptica gastroduodenal e possibilita tanto a pesquisa de H. pylori como o diagnóstico de doenças gastroduodenais. A pesquisa de H. pylori pelo estudo histopatológico é um método de alta sensibilidade e especificidade. A bactéria pode ser evidenciada pela coloração hematoxilina-eosina, mas nos casos de baixa densidade bacteriana a coloração Giemsa modificada ou a imuno-histoquímica são mais indicadas.
A EDA com biópsia e avaliação histopatológica tem sido considerada, por muitos autores, como o padrão-ouro para a pesquisa do H. pylori, apesar da desvantagem do alto custo e da necessidade de sedação ou anestesia geral.
Como a distribuição do H. pylori não ocorre de maneira homogênea na mucosa, recomenda-se a retirada de pelo menos 4 fragmentos: 2 do corpo e 2 do antro. As amostras do antro, local onde a bactéria geralmente é encontrada em maior densidade e frequência, devem ser retiradas da região pré-pilórica, 2 a 3 cm do piloro (uma na grande e outra na pequena curvatura). Para evitar resultados falso-negativos, recomenda-se realizar o teste para pesquisa de H. pylori no mínimo 2 semanas após a interrupção do tratamento com inibidores da bomba de próton (IBP) e 4 semanas após a interrupção dos antibióticos ou tratamento para erradicação do H. pylori.
As figuras 8-9 e 10 demonstram a lesão macroscópica e os achados do microrganismo no exame histopatológico.
Cultura
A cultura do material da biópsia gástrica, possibilita o diagnóstico da infecção, o estudo da sensibilidade da bactéria aos antimicrobianos, a escolha correta das medicações a serem utilizadas e a presença de fatores de virulência. Além disso, tem também a vantagem de permitir a realização do antibiograma, útil principalmente nos casos de fracasso terapêutico. A sensibilidade deste método varia de 77 a 100%. Para se obter o sucesso no isolamento da bactéria, deve-se avaliar pelo menos 2 fragmentos (1 de corpo e 1 de antro). A desvantagem deste teste é seu alto custo, portanto, deve ser reservado aos grupos de pesquisa e na suspeita de resistência às drogas.
Teste da urease
A urease pré-formada pelo H. pylori encontra-se presente no material da biópsia gástrica e hidrolisa a ureia contida no reativo, produzindo amônia e alcalinizando o meio. A alcalinização é percebida por um indicador de pH, que altera a cor da solução de amarelo para cor-de-rosa ou vermelho. O teste é considerado positivo no caso de o gel tornar-se vermelho na leitura realizada 24 horas após o exame, porém, mudanças de cor mais tardias podem resultar falso-positivos. A eficácia do teste depende do número de tecidos testados, dos sítios das biópsias, da carga bacteriana, da presença de sangramento e do uso prévio de antibióticos ou IBP.
Novas técnicas diagnósticas
A EDA com magnificação apresenta boa sensibilidade e especificidade; a EDA com luz branca e autofluorescência é utilizada para identificar áreas da mucosa gástrica normal (como na gastrite atrófica), auxiliando na escolha do local a ser biopsiado. A Espectroscopia infravermelha de Raman, que é uma técnica vibracional espectroscópica, quando adaptada à endoscopia, detectou a presença de H. pylori com sensibilidade e especificidade em torno de 80%.
Tratamento
O tratamento indicado é terapia tríplice durante 4 semanas com os seguintes medicamentos:
Omeprazol + Amoxicilina + Claritromicina
Indicações de tratamento conforme consensos e diretrizes:
Consenso Brasileiro:
Úlcera duodenal: ativa ou cicatrizada
Linfoma MALT de baixo grau
Pós-cirurgia para câncer gástrico avançado, em pacientes submetidos a gastrectomia parcial
Gastrite com histologia intensa
Outras situações:
- Pacientes de risco para úlcera/complicações que utilizam anti-inflamatórios não esteroides.
- Pacientes com história prévia de úlcera ou hemorragia digestiva alta que deverão usar AINE inibidores específicos ou não da COX2.
- Indivíduos de risco para câncer gástrico
World Gastroenterological Organization:
Úlcera gástrica e/ou duodenal, passada ou presente, com ou sem complicações
Após ressecção de câncer gástrico
Linfoma MALT
Gastrite atrófica
Dispepsia
Parentes de primeiro grau com câncer gástrico
Desejo do paciente
Prognóstico
A gastrite crônica associada a infecção por H. pylori normalmente é bem controlada com terapia medicamentosa. A resolução da infecção pela bactéria geralmente é alcançada de 80 a 95% dos casos. Ocasionalmente pode progredir para úlceras, necessitando de tempo maior de tratamento.
Doença inflamatória intestinal
A Doença de Crohn é a causa mais frequente de doença granulomatosa no estômago. Apesar do envolvimento gastroduodenal ser comum, raramente a doença é limitada ao estômago e normalmente acomete porções mais distais do intestino. Anormalidades macroscópicas e/ou histológicas estão presentes no esôfago, estômago ou duodeno em até 80% das crianças com Doença de Crohn.
Gastrite Eosinofílica
Gastrite eosinofílica (GE) faz parte do conjunto das doenças eosinofílicas gastrointestinais, tais como, esofagite eosinofílica, gastroenteropatia eosinofílica e proctocolite eosinofílica. O diagnóstico pode ser quando na presença de sintomas associados a infiltrado eosinofílico proeminente e exclusão de outras causas do infiltrado.
Alguns pacientes têm histórico de asma, sensibilidade a alimentos, eczema, alergias sazonais e atopia. Geralmente são secundárias a reações mistas IgE e não-IgE mediadas com aumento de IL-5, IL-3 e fator estimulador de colônia de granulócitos (todas citocinas proinflamatórias). A eosinofilia usualmente está presente na mucosa, mas pode ser também mais profunda atingindo a muscular da mucosa e até mesmo a camada serosa.
Os sintomas da GE dependem da gravidade e extensão do envolvimento. Em lactentes e crianças pré-escolares as manifestações clínicas podem ser de failure to thrive associada à recusa alimentar. Além disto, anemia devido a sangramento oculto e hipoalbuminemia ocorrem com frequência.
No caso de haver envolvimento apenas da mucosa os sintomas são semelhantes a outros tipos de gastrite, porém, em alguns casos podem ocorrer manifestações de obstrução gástrica. Por outro lado, quando muscular da mucosa e/ou a camada serosa estão envolvidas, dores abdominais e ascite podem estar presentes.
GE geralmente está associada a alérgeno específico e na infância os antígenos mais comuns: proteína do leite de vaca, soja, ovo e trigo. A relação temporal entre a ingestão de certo alimento e o surgimento dos sintomas característicos, é fundamental para estabelecer o diagnóstico. Na imensa maioria dos casos o aparecimento de irritabilidade, dor abdominal e vômitos ocorre após 1 a 2 horas da ingestão do alimento agressor.
Deve-se levar em consideração que outras entidades tais como, Doença de Crohn, infestação parasitária e infecções agudas/crônicas (ex: H. pylori) podem estar acompanhadas de eosinofilia na mucosa, porém geralmente o infiltrado é bem mais discreto do que o observado nas doenças alérgicas (doenças eosinofílicas).
Achados endoscópicos
Quando presentes não são específicos, no entanto, os achados mais frequentes são: friabilidade e eritema da mucosa, erosões, pregueado mucoso espesso e lesões nodulares da mucosa ou pseudopólipos (especialmente no antro).
A mucosa, em alguns casos, pode apresentar-se macroscopicamente normal.
Achados histológicos
O achado mais significativo é o infiltrado eosinofilico na lâmina própria. Ocasionalmente linfócitos, células plasmáticas e neutrófilos podem estar presentes.
Tratamento
O pilar do tratamento da gastrite eosinofílica deve se basear na exclusão dos possíveis alérgenos. Há um consenso internacional que advoga o uso de uma dieta de eliminação dos 6 principais alérgenos, a saber: leite e derivados, soja, trigo, ovo, peixe e frutos do mar, frutos secos (nozes, cacau, castanhas, avelã, amendoim etc.) e eu também incluo o coco.
Nos casos mais graves deve-se usar inicialmente corticosteroides sistêmicos, e também antagonistas de receptor de leucotrieno (Montelucaste).
É difícil a aplicação de esteroide tópico na mucosa gástrica, e da mesma forma, preparações com Cromoglicato são dificilmente eficazes.
Estudo confirmou que na população dos EUA, a quantificação de eosinófilos gástricos deve ser <38 eosinófilos/mm2. No caso da Gastrite eosinofilica a quantificação foi >127 eosinófilos/mm2 ou 30 eosinófilos/CGA.
Gastrite induzida por anti-inflamatórios não esteroides (AINEs)
É do conhecimento geral que os anti-inflamatórios são as drogas mais prescritas em todo o mundo. Apesar de serem indicadas como primeiro tratamento de diversas doenças, seu uso deve ser limitado em virtude dos efeitos adversos sobre o TGI.
As drogas anti-inflamatórias podem resultar em danos à mucosa, podendo até mesmo causar processos ulcerosos.
A ação tópica dos AINEs causa hemorragia aguda e erosão 15 a 30 minutos após a ingestão, primeiramente no antro. Vale referir que as lesões precoces são geralmente assintomáticas e não tem significância clínica.
A presença sistêmica dos AINEs compromete a integridade da mucosa e pode ocasionar ulceração grave da mucosa. Em crianças menores, a ulceração da incisura gástrica, associada a sangramento gastrointestinal alto é uma típica da lesão provocada por AINEs. O sangramento pode ocorrer após apenas 1 ou 2 doses da medicação ou com uso crônico.
Os seguintes achados histológicos se destacam: hiperplasia epitelial, depleção de mucina, núcleos alargados, ectasia vascular e edema.
Gastrite por Citomegalovirus (CMV)
A infecção por CMV ocorre com maior frequência em indivíduos imunocomprometidos, como por exemplo: AIDS, transplante de órgão sólido ou medula óssea. Nas crianças imunocompetentes, a infecção por CMV normalmente está associada a Doença de Menetrier. A infecção tende a ocorrer no fundo e corpo gástrico, acarretando espessamento da parede, ulceração, hemorragia e perfuração.
Os principais achados histológicos são: inflamação aguda e crônica com edema, necrose e inclusão citomegálica em células endoteliais e epiteliais, bem como nas bases das úlceras e na mucosa adjacente as úlceras. O CMV usualmente afeta as porções mais profundas da mucosa e a inflamação ativa pode ser focal ou panmucosal.
O diagnóstico torna-se mais eficaz quando se faz cultura do vírus no material da biópsia da mucosa. A detecção do vírus também pode ser realizada pela técnica da imunohistoquímica.
O tratamento com Ganciclovir pode ser eficaz em pacientes imunossuprimidos, porém a recorrência ocorre com frequência em 1 a 2 meses.
Doença granulomatosa crônica
Trata-se de uma deficiência imunológica rara que ocorre com
maior frequência em meninos, acarretando o envolvimento granulomatoso da parede gástrica.
A enfermidade pode cursar com sintomas gastrointestinais altos, bem como lesões aftosas orais podem ocorrer, o que obriga a um diagnóstico diferencial de Doença de Crohn. Em alguns casos pode surgir gastroenterite grave.
Não há achados endoscópicos típicos, geralmente a mucosa antral esta pálida e espessada. A histologia pode revelar inflamação focal, crônica ativa do antro com granulomas ou células gigantes multinucleares.
Outras gastrites granulomatosas raramente são processos primários. Geralmente são decorrentes de alguma patologia de base, tais como: infecções, corpo estranho, doenças imuno-mediadas, carcinoma, linfomas e infecção por H. pylori.
Na maioria dos casos a aparência morfológica do granuloma não fornece claras evidencias da causa. Em países desenvolvidos, a gastrite granulomatosa, com exceção da secundária a Doença de Crohn, é rara. O diagnóstico diferencial inclui tuberculose, histiocitose, reação a corpo estranho, dentre outras doenças.
Gastrite granulomatosa idiopática isolada é uma reação crônica granulomatosa limitada ao estômago, uma condição rara e deve ser diagnóstico de exclusão.
Gastrite de Henoch-Schönlein
A púrpura de Henoch-Schönlein também conhecida como púrpura anafilactóide ou púrpura reumática, é a vasculite mais frequente em crianças e adolescentes. Trata-se de uma doença multisistêmica que pode acometer vasos de pequeno e médio calibres. Pode ocorrer em qualquer idade, entretanto, o pico de incidência situa-se entre 4 e 6 anos.
A enfermidade pode envolver a pele, o trato gastrointestinal, rins e articulações.
Os principais sintomas gastrointestinais são: cólica periumbilical, dor epigástrica, náusea, vômitos e sangramento digestivo. Mais raramente pode ocorrer hematoma intramural, intussuscepção, infarto intestinal, perfuração intestinal, pancreatite, apendicite e colecistite.
Os achados endoscópicos mais característicos no estômago são: mucosa com eritema ou hemorragia, edema de mucosa com erosões ou úlceras. Biópsias da mucosa gástrica geralmente são muito superficiais para poder demonstrar as alterações histológicas típicas, porém, pode ser vista vasculite semelhante à da pele.
Gastrite induzida
por exercício
Trata-se de entidade bem conhecida em atletas corredores de longas distâncias e em geral cursa com anemia com ou sem sintomas gastrointestinais.
Os sintomas costumam ocorrem após o exercício físico e se manifestam por cólica abdominal, dor epigástrica, náusea, refluxo gastresofágico e vômitos.
A lesão mucosa apresenta-se igualmente no antro, corpo e fundo gástrico.
Conclusão
Gastrite trata-se de uma denominação genérica envolvendo uma lesão da mucosa gástrica decorrente de inúmeras etiologias. A endoscopia digestiva alta associada à biópsia gástrica representa uma ferramenta de fundamental importância para a investigação diagnóstica etiológica. O esclarecimento diagnóstico de certeza torna-se extremamente importante para que se possa propor o tratamento específico e adequado.