Capítulo 12
12.1- O Alto Xingu: clima, agricultura e pesca
Há duas estações climáticas nitidamente distinguíveis na região do Alto Xingu: inverno, ou estação das chuvas, que se estende de outubro a março, e, verão, ou estação da seca, de abril a setembro.
A partir de outubro, com a chegada das primeiras chuvas, que desta época até o final do inverno são praticamente diárias, as águas dos rios começam a subir cobrindo as praias e invadindo suas margens mais baixas (Figura 1).
Os meses de fevereiro e março caracterizam-se pelas grandes enchentes, os rios transbordam e suas águas ocupam as matas marginais (Figura 2).
A partir de abril as chuvas começam a diminuir de intensidade e frequência, prenunciando o começo do período da seca. Os rios, gradativamente, voltam a ocupar seus cursos naturais e as praias vão, pouco a pouco, reaparecendo; pequenos lagos são, então, formados nas terras baixas que beiram os rios, aprisionando peixes, o que facilita sobremaneira a pesca (Figura 3-4).
No mês de setembro, portanto, já no fim do verão, os tracajás saem à noite paras as praias onde cavam e botam seus ovos, que são muito apreciados pelos nativos.
Os índios têm agricultura extensiva e itinerante cujo produto principal é a mandioca (Manhiot utilíssima), que fornece os nutrientes de fundamental importância para a preparação do beiju, o qual é o produto básico fornecedor de carboidratos da alimentação do índio do Alto Xingu. O cultivo da mandioca é realizado em roças individuais e o plantio é feito no período de tempo que antecede à chegada das chuvas. As áreas mais cobiçadas para a roça são as de terra preta, considerada mais férteis, e as de mato limpo, isto é, coberta de mata alta e sem vegetação rasteira. Para a abertura das roças os índios utilizam as técnicas de derrubada e da queimada. Trabalham na limpeza da terra os homens residentes de uma mesma casa. Seis meses após o plantio, as raízes estão prontas para ser arrancadas do solo, cujo procedimento é atribuição das mulheres. Para extrair as raízes as mulheres utilizam um pedaço de pau ou facão e a seguir carregam para as aldeias onde serão devidamente processadas (Figura 5).
A pesca é a principal atividade de busca intencional de comida; ela ocorre durante todo o ano, porém, tem seu apogeu no período da seca, posto que na época das chuvas a tarefa se torna sobremaneira mais difícil. As técnicas utilizadas são as mais variadas, podendo ser coletivas com uso do timbó (veneno específico utilizado pelos índios), ou individuais com arco e flecha (Figura 6).
A partir da década de 1970, à medida que o contato com nossa civilização foi se estreitando foi introduzido o uso da linha e anzol, ainda que não frequentemente. A técnica do timbó é a mais produtiva, pois este é um cipó ictiotóxico, cujos feixes são amassados e lavados em água previamente represada. Os peixes mortos pela ação do veneno, são colhidos e moqueados em local próximo ao da pescaria. Esse tipo de pesca, que envolve a maioria dos homens da aldeia é usualmente utilizado às vésperas de alguma festa que terá a participação de um grande número de convidados (Figura 7).
As pescas com timbó ocorrem no verão, quando as águas dos rios começam a baixar e dão lugar à formação de pequenas lagoas, facilitando o represamento de pequenas baías e igarapés, possibilitando assim, o uso do timbó. Nesse período de maior fartura de peixe é realizada a cerimônia mais importante da Cultura Xinguana, o Quarup.
Quando a pescaria é farta, o alimento excedente, em forma de peixe moqueado, fico exposto no jirau, que está localizado no centro da oca, à disposição dos seus moradores. Por outro lado, quando o alimento escasseia, o que ocorre principalmente na época das chuvas, o peixe é ensopado e distribuído com beiju aos demais moradores da oca.
12.2- O Alto Xingu: Alimentação
A alimentação está fundamentalmente baseada na mandioca e no peixe.
O processamento da mandioca, desde sua retirada do solo e transporte, até o preparo do beiju e do mingau (mohet), é tarefa exclusivamente da mulher. A elaboração do beiju passa por uma série de etapas intermediárias cuja sequência de eventos parece obedecer um verdadeiro ritual, o que deixa transparecer ao observador, que esta é uma prática que transcende à finalidade básica da nutrição. Vale ressaltar que a mandioca cultivada pelos índios é popularmente conhecida pela denominação de “mandioca brava” ou “amarga”, a qual contém elevado teor de ácido cianídrico, substância tóxica e mortal. Para que a mandioca possa, então, ser utilizada na alimentação, seu preparo inclui dentro das inúmeras etapas a inativação deste poderoso veneno.
Inicialmente, a mandioca é mantida por um curto período de tempo submersa em água para amolecer sua casca, a qual é retirada por raspagem, o que é feito com o auxílio de conchas que são encontradas nas praias dos rios (Figura 1).
A seguir, a mandioca é ralada em tábuas nas quais são incrustradas espinhos da palmeira de buriti ou dentes de piranha (Figura 2).
A massa proveniente deste processo é constantemente lavada com água e espremida em uma esteira de talos de buriti denominada tuavi, sobre uma grande panela de cerâmica (Figuras 3-4-5).
Esta ação permite separar a massa da mandioca em duas frações, a saber: a polpa, porção retida na esteira e o polvilho que atravessa as malhas do tuavi juntamente com a água. A polpa, uma vez separada, é colocada para secar ao sol, moldada sob forma de pequenos “pães”, ai permanecendo durante algumas semanas (Figura 6).
A solução aquosa contendo o polvilho retida na panela de cerâmica é submetida à fervura para eliminar totalmente o ácido cianídrico remanescente. Posteriormente, o polvilho é separado do caldo por um processo de decantação e também colocado para secar ao sol (Figura 7).
A polpa e o polvilho, depois de secos e transformados em barras, são armazenados dentro da casa em grandes depósitos cilíndricos que variam de 2,40m a 2,60m de altura por 0,80m a 0,85m de diâmetro. Parte desse material serve para ser utilizado na alimentação diária, enquanto que a outra parte, que é muito mais significativa permanece armazenada para ser aproveitada na época das chuvas, pois durante a estação chuvosa, que dura praticamente 6 meses, as atividades do plantio até o processamento da mandioca deixam de existir.
A elaboração do beiju se dá ao assar uma certa quantidade de polvilho sobre uma grande chapa circular feita de cerâmica diretamente ao fogo (Figuras 8-9).
Várias vezes por dia o fogo é ativado para o preparo do beiju, que é comido puro ou acompanhado de peixe assado ou ensopado. Na cultura indígena não há horário predeterminado para se alimentar, o índio come a qualquer momento que sentir fome (Figura 10).
O peixe é a grande fonte proteica de origem animal; os índios comem exclusivamente peixes com escamas e os mais comuns são: tucunaré (Cichla mutifasciata), matrinchan (Brycon hilari), curimatá (Prochilodus hartu) e piau (Astyanax sp) (Figuras 11-12).
Os peixes são preparados na brasa ou cozidos; quando a pesca é farta e havendo o desejo de conservar o peixe por vários dias, estes são moqueados sobre a fogueira.
Frutas silvestres, ovos de tracajá e mel também fazem parte da alimentação dos índios, porém, sem maior conotação de destaque, bem como outros produtos de origem vegetal, tais como: milho, mamão, batata doce, abóbora, melancia e banana, que são plantados nos arredores da aldeia e são consumidos principalmente na época das chuvas, quando pode haver escassez de peixe.
Atenção especial deve ser dada ao pequi (Caryocar sp), uma fruta de polpa amarela, oleaginosa, que contém elevado teor de vitamina A. Há árvores de pequi em abundância em toda a região; o pequi é produzido e colhido apenas entre os meses de setembro e outubro, e, nesta época, seu consumo é intenso. Para preservar os frutos durante todo o ano, eles são especialmente armazenados em cestas de bambu e submersos na água do lago próximo à aldeia. Esse procedimento, permite que seja formada uma massa da polpa a qual é consumida in natura quando o índio assim o desejar. O caroço do pequi é uma amêndoa após ser ressecada ao sol também é consumida na alimentação.
A alimentação das crianças merece um destaque particular. Durante praticamente todo o primeiro ano de vida baseia-se no aleitamento natural exclusivo, que é universal, abrangendo, portanto, toda a população infantil dessa faixa etária (Figuras 13).
Os lactentes são carregados ao colo e permanecem junto ao corpo materno grande parte do tempo, mamam quando tem vontade, não há horário preestabelecido para as mamadas, é obedecido o esquema da livre demanda (Figuras 14-15).
Ao se aproximar o fim do primeiro ano alguns alimentos do desmame começam a ser introduzidos na dieta do lactente, inicialmente de forma esporádica, posteriormente de forma rotineira. O mingau de mandioca é o primeiro alimento não lácteo oferecido para a criança, em seguida é introduzido o peixe. A despeito da introdução de novos alimentos, o aleitamento natural estende-se por vários anos de vida da criança, posto que é comum observar-se crianças maiores ainda sugando o seio materno.
12.3- O Alto Xingu: Cerimônias
Dentre as cerimônias festivas que proporcionam a regularidade dos contatos intertribais da região, três merecem destaque especial, a saber: Quarup, Javari e Moitará.
O Quarup é uma cerimônia que reúne em uma única aldeia várias tribos. É uma festividade celebrada em homenagem aos mortos de uma determinada aldeia, que marca o término do período de luto. Consta da dramatização de uma das versões do mito da criação do ser humano e é conjugada com uma competição desportiva, que consiste em uma luta corporal denominada uca-uca. Há também nesta festividade eventuais trocas de artesanato (Figuras 16-17-18-19).
O Javari enfatiza a distensão e a oposição dos grupos participantes. Para esta festa apenas uma tribo é convidada e seu ponto alto é a competição desportiva do arremesso de flechas entre os dois grupos litigantes. O Javari é considerado um mecanismo estabilizador das relações intertribais, posto que visa canalizar as atitudes de rivalidade e as tendências agressivas para uma expressão social e culturalmente sancionada, ou seja, uma competição desportiva que simboliza uma atividade guerreira (Figuras 20-21-22-23-24).
O Moitará, instituição tradicional de troca de bens, é uma forma de intensificar as relações sociais intertribais. Os habitantes de uma determinada tribo visitam a anfitriã apenas para efetuar as trocas dos seus bens.