Capítulo 23
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Minha trajetória na carreira Acadêmica na Escola Paulista de Medicina (EPM) – Parte 5
23.1- A consolidação da tradição em Pesquisa, Produção e Divulgação do Conhecimento, Ensino e a sólida formação de Especialistas em Gastroenterologia e Nutrição em Pediatria
O artigo segundo do Estatuto da UNIFESP reza, desde sua fundação e reafirmado na sua última revisão, em 2011, o seguinte: “A UNIFESP tem por finalidade desempenhar com excelência atividades indissociáveis de ensino, pesquisa e extensão”.
Desde quando ingressei na carreira acadêmica, em 1974, tinha muito clara a ideia de que a atividade de pesquisa é um pilar fundamental na estrutura universitária, a qual tem de vir necessariamente acompanhada da produção e a consequente divulgação do conhecimento produzido. A realização da pesquisa é o passo inicial, porém, esta somente será considerada concretizada quando os resultados da mesma forem devidamente publicados nos periódicos científicos indexados da sua área de atuação. As nações mais desenvolvidas do mundo alcançaram esta condição porque se apoiaram fortemente no fomento à pesquisa. Essa tomada de decisão política lhes proporcionou serem detentores de tecnologia própria nos mais diversos setores das atividades profissionais, o que consequentemente abriu as portas para a aquisição da soberania. Nunca me esqueço de algo que li escrito em um enorme painel na chegada do aeroporto de Oslo, Noruega, em 1985, e que me impressionou sobremaneira porque reafirmava tudo aquilo que eu pensava sobre a importância da pesquisa para a humanidade, dizia: “Research is the future, without research there is no future” (Figuras 1-2-3-4-5-6-7-8). Foi uma viagem de 45 dias a convite do Karolinska Institute para visitar diferentes institutos de pesquisa localizados na Noruega, Suécia e Dinamarca. Abaixo algumas imagens da visita à Noruega, minha primeira parada.
A nação que não busca desenvolver suas próprias tecnologias estará eternamente fadada a ser um satélite, nunca terá luz própria, posto que será sempre dependente de alguma outra nação que esteja disposta a lhe vender seus conhecimentos produzidos a partir do investimento aplicado à pesquisa. A qualidade do ensino de uma determinada instituição universitária, por sua vez, deve ter suas bases assentadas em uma relação diretamente proporcional à qualidade e à quantidade dos conhecimentos aí produzidos. Deve-se também sempre levar em consideração que aqueles conhecimentos já tradicionalmente consagrados e que, portanto, são do domínio geral não podem ser desprezados, mas sim, incorporados ao projeto pedagógico curricular. É esta associação de fatores que tornam indissociáveis pesquisa e ensino. A qualidade da extensão irá depender destas duas variáveis anteriormente mencionadas, o que no caso da Medicina, esta é essencialmente a atividade dedicada à assistência.
Quando Prof. Jamal Wehba e eu criamos a Disciplina de Gastroenterologia Pediátrica tínhamos a clara visão de seguir os preceitos acima enunciados e, por estes motivos, tratamos desde o seu início colocar em prática estes valores. De fato, isto foi inaugurado após pouco mais de 1 ano de atividade, posto que no Congresso Pan-americano de Pediatria realizado em São Paulo, em outubro de 1975, tivemos a oportunidade de apresentar nossos primeiros trabalhos de pesquisa nas sessões de Temas Livres, os quais eram resultantes da nossa experiência clínica cuidadosamente compilada e revisada (Figura 9).
Este evento teve o caráter da formação do embrião de uma vasta linha de pesquisa que foi se consolidando com o passar dos anos até alcançar uma sólida tradição em pesquisa, que se tornou de reconhecimento nacional e internacional. Como o ensino sempre fez parte de fundamental importância da nossa filosofia de trabalho, concomitantemente às atividades assistenciais abrimos as portas da nossa Disciplina para a formação de Especialistas. Passamos a oferecer um Programa de Especialização com 2 anos de duração baseado em atividades teórico-práticas em tempo integral, ainda com a possibilidade de se estender para a realização dos cursos de Pós-Graduação sentido estrito, Mestrado e Doutorado. Vale enfatizar que este programa, inédito no meio acadêmico nacional, quando da sua implantação em 1975, há poucos anos passou a ser considerado uma atividade oficial do MEC e da Sociedade Brasileira de Pediatria como modalidade de Residência Médica com 2 anos de duração após o término da Residência Médica em Pediatria também com 2 anos de duração. Atualmente ingressam por concurso 6 Médicos Residentes por ano para cumprir um extenso programa teórico-prático, de treinamento em serviço, que abrange todas as áreas da Especialidade, tanto do ponto de vista ambulatorial quanto hospitalar. Inclusive faz parte deste programa a realização dos inúmeros procedimentos invasivos e não invasivos próprios da especialidade, tais como, manometria ano-retal, pHmetria esofágica, testes do Hidrogênio no ar expirado, endoscopia digestiva alta, colonoscopia ente outros (Figuras 10-11-12-13).
Ao longo destes 40 anos de intensa atividade acadêmica, incontáveis conquistas foram pouco a pouco se acumulando em meu Curriculum vitae, as quais abaixo passo resumidamente a descrever:
1. Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPQ
Ao retornar do meu Pós-Doutorado no North Shore University Hospital, Cornell University, em 1979, fiz uma aplicação ao CNPQ para solicitar uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa, a qual foi aprovada na qualidade IC e que posteriormente foi promovida para IA. Esta Bolsa tem a duração de 48 meses e requer a apresentação de um projeto de pesquisa que deve ser cumprido neste espaço de tempo. Antes do término da vigência da mesma pode ser feita a aplicação para uma nova Bolsa acompanhada respectivamente de um novo projeto de pesquisa. A renovação da Bolsa está condicionada ao total cumprimento do projeto anterior e o novo projeto apresentado, para ser aprovado, irá depender da importância do seu mérito científico. Este processo, no meu caso, perdurou ao longo de 35 anos, por sucessivas e consecutivas reaplicações, até março de 2014 (ano da minha aposentadoria). Além das aprovações das minhas solicitações de Bolsas, vale a pena referir que em 1992 fui eleito pelos meus pares Pediatras, ligados à vida acadêmica, para fazer parte do Comitê de Pesquisa do CNPQ, na área da Pediatria para um mandato de 3 anos. Neste período de tempo 2 vezes por ano permanecia em Brasília, durante 1 semana, para julgar os pedidos de Bolsa Pesquisador e os de financiamento de trabalhos de pesquisa enviados por pesquisadores vinculados às diversas instituições universitárias nacionais.
2. Produção Científica
Coerente com os princípios de que a pesquisa uma vez terminada, para ter validade reconhecida, necessita vir seguida da elaboração do respectivo artigo manuscrito. Este deve ser submetido à aprovação do Conselho Editorial de um periódico científico para, no caso de ser aprovado, vir a ser publicado. Trata-se de um árduo esforço e, muitas vezes, de prolongadas discussões com os pares revisores para até finalmente se obter, ou não, a aprovação do trabalho. Somente após ser cumprida toda esta delongada tramitação é que se pode afirmar que sua pesquisa passou a caracterizar uma divulgação do conhecimento produzido. Por todas estas razões, independentemente dos inúmeros anos vivenciados para esta atividade, é sempre uma enorme emoção ver seu esforço dedicado à pesquisa ser recompensado pela publicação do seu artigo em um periódico científico.
Ao longo destes anos de atividade acadêmica tive a incontida alegria de ter publicado 321 artigos de pesquisa, 210 deles em periódicos nacionais e 111 em periódicos internacionais. Alguns destes artigos são considerados “landmarkers” da especialidade por terem sido responsáveis por desvendar caminhos até então desconhecidos quer seja em nível nacional como também internacional. Permito-me abordar alguns deles como exemplo insofismável desta afirmação.
Quando realizei minha especialização em Gastroenterologia Pediátrica no Policlínico Alejandro Posadas sob a orientação do Dr. Horácio Toccalino, em Buenos Aires, durante o ano de 1973, como parte do meu programa de Residência Médica na EPM (Estágio optativo), tive a oportunidade de pela primeira vez, em minha atividade profissional, ver crianças portadoras de Doença Celíaca (Figura 14).
Logo no início do treinamento pude atender os primeiros celíacos e comprovei que eles tinham o mesmo aspecto das crianças com desnutrição que eu atendia no Hospital São Paulo, e que eram consideradas desnutridas por problemas socioeconômicos. Este fato me fez refletir profundamente do por que não se diagnosticava Doença Celíaca no Brasil, cheguei a simples conclusão de que não se pensava nesta possibilidade, era mais simples rotular estes pacientes como produto dos problemas socioeconômicos existentes entre no nosso país. No entanto, após vivenciar esta experiência eu estava seguro que ao voltar iria encontrar esta enfermidade entre nós. Dito e feito, assim que retornei ao HSP, como dispúnhamos de uma cápsula de Crosby-Kugler para realizar biópsia de intestino delgado, pude comprovar a que aqui também havia Doença Celíaca. Foi em 1974, em um paciente de 17 meses com diarreia crônica e desnutrição grave, que até então era imputada ao tal problema socioeconômico. O quadro clínico do paciente era assustador, pelo aspecto da desnutrição grave, pela total apatia e desinteresse do ambiente que o cercava, pelo grau de atrofia da musculatura glútea e pela praticamente ausência de tecido celular subcutâneo. A biópsia do intestino delgado revelou atrofia vilositária subtotal e hiperplasia das glândulas crípticas. Como a lesão anatomopatológica mostrava-se altamente característica de Doença Celíaca foi introduzida uma dieta isenta de glúten (Figuras 15-16).
Pouco a pouco o paciente passou a se interessar pelo mundo que o rodeava, iniciou a brincar e rapidamente tornou-se assintomático (Figura 17).
Sua evolução clínica em pouco tempo mostrou-se espetacular e a recuperação nutricional foi se tornando evidente até a completa normalização. O paciente recebeu alta hospitalar em excelentes condições clínicas e a família foi devidamente orientada para a necessidade de cumprir a dieta isenta de glúten e encaminhada para o nosso ambulatório. No seguimento ambulatorial o paciente persistia cumprindo à risca a dieta isenta de glúten, mantinha-se assintomático e ao cabo de 6 meses após o início da dieta foi realizada uma nova biópsia intestinal que se revelou totalmente normal (Figura 18).
Este foi o primeiro caso de Doença Celíaca comprovada com 2 biópsias publicado em nosso meio, na revista Pediatria Prática, em 1976. A partir daí Doença Celíaca passou a ser parte da nossa linha de pesquisa, pois uma grande quantidade de novos casos foi sendo diagnosticada, o que comprovou de forma cabal que a existência desta enfermidade está longe de ser rara no nosso meio. Ao longo destes anos inúmeros projetos de pesquisa abordando os mais distintos aspectos da Doença Celíaca passaram a ser realizados pelo nosso grupo, os quais resultaram em teses de Mestrado e Doutorado, merecendo também importantes publicações em periódicos nacionais e internacionais.
Na nossa linha de pesquisa Diarreia-Desnutrição pudemos caracterizar os mecanismos fisiopatológicos envolvidos na gênese da Diarreia Aguda, a interação entre o agente enteropatogênico e o hospedeiro, em especial nos casos da diarreia provocada pelas diferentes cepas enteropatogênicas de Escherichia coli. O conhecimento desta interação agente-hospedeiro possibilitou a compreensão e descrição das intolerâncias alimentares, principalmente dos carboidratos da dieta, mais particularmente da lactose e até mesmo aos monossacarídeos, como também alergia alimentar, que acarretam persistência da diarreia com grave agravo nutricional e alto risco de morte. A identificação destes fatores de complicação possibilitou a intervenção nutricional apropriada que resultou em dramática redução da mortalidade por diarreia em crianças menores de 5 anos, a qual foi praticamente extinta em nossa instituição. Como reconhecimento internacional desta contribuição para aliviar o sofrimento das crianças fui convidado pela revista The Lancet, uma das mais conceituadas revistas médicas do mundo, cujo Fator de Impacto é 39, para escrever o artigo intitulado “Escherichia coli infections and Malnutrition” em um número especialmente editado em 2000, para divulgar as mais importantes conquistas médicas das últimas décadas (Figura 19).
O melhor conhecimento das disfunções digestivo-absortivas na desnutrição proteico-calórica, em especial, as graves alterações morfológicas da mucosa do intestino delgado, em lactentes portadores de diarreia crônica, foram possíveis graças à investigação que resultou na minha Tese de Mestrado, apresentada e aprovada com nota 10,0, no IBEPEGE.
A descrição da história natural da Enteropatia Ambiental foi um árduo e longo caminho trilhado até ser definitivamente desvendada. Esta conquista somente foi possível graças a inestimável contribuição dos meus inúmeros alunos de Pós-Graduação que, com muita perseverança, durante anos a fio conjuntamente fomos decifrando peça a peça deste segredo até então não esclarecido, para finalmente montarmos o quebra-cabeças completo. Esta descoberta pôs por terra um preconceituoso conceito que vigia por muitos anos sob a denominação de Enteropatia Tropical. Tratava-se de um termo fatalista que trazia embutida a ideia de que este era um mal que inevitavelmente acometeria os indivíduos que vivem nos ambientes ao redor dos trópicos. Com as publicações de vários trabalhos que evidenciaram, sob vários aspectos, a influência nefasta do meio ambiente desprovido de saneamento básico sobre os indivíduos que vivem nestas comunidades totalmente insalubres, devido à contaminação ambiental, houve o reconhecimento nacional e internacional desta evidência, ao ser publicado um artigo no Journal of Tropical Pediatrics, em 1984, fator de impacto 1.256, propondo a mudança da denominação para Environmental Enteropathy (Figura 20).
A extraordinária experiência adquirida com o trabalho de campo vivenciada inicialmente com a população nativa do Parque Indígena do Xingu, desde o início dos anos 1970 até o ano 2000, foi quem sabe o maior aprendizado que eu pude adquirir não somente como médico pesquisador, mas sobretudo como ser humano. Pude lá realizar o inédito trabalho de avaliação do estado nutricional da população infantil e demonstrar que desnutrição não era um problema de saúde daquela população denominada de “cultura primitiva”. Aliás muito ao contrário, a sabedoria ancestral desta civilização ensinou-me que a prática do aleitamento natural exclusivo por tempo prolongado, associada à utilização racional dos recursos naturais e à preservação do meio ambiente são princípios básicos que mantém o estado de eutrofia vigente na imensa maioria das crianças, a despeito de alguns fatores ambientais inóspitos, como por exemplo a existência da malária ser endêmica nesta região. Esta pesquisa resultou na minha tese de Doutorado em Pediatria, em 1977, apresentada e aprovada com nota 10,0 no Departamento de Pediatria da EPM. Posteriormente, este trabalho foi publicado na revista The American Journal of Clinical Nutrition, em 1981, uma das mais prestigiosas na área de nutrição clínica, com fator de impacto 6.8. Esta vivencia permitiu-me desenvolver uma vasta expertise que possibilitou realizar outros trabalhos de campo com populações nativas como os Terenas em Aquidauana, Mato Grosso do Sul (Figuras 21-22) e nas várias aldeias dos índios Guaranis situadas ao longo do litoral de São Paulo (Figuras 23-24).
Mais ainda também proporcionou a realização do projeto assistencial e de pesquisa com a população infantil da favela Cidade Leonor, em São Paulo. Esse projeto teve oportunidade de denunciar de forma veemente as condições sub-humanas de vida dos indivíduos que habitam estas comunidades despossuídas, que se assemelham a uma verdadeira cloaca a céu aberto, tão frequentemente observadas nos grandes centros urbanos do país.
No campo da pesquisa experimental tive a oportunidade de trabalhar na Pediatric Research Division, do North Shore University Hospital, Cornell University, nos anos de 1977-78. Lá desenvolvi trabalhos de perfusão intestinal em ratos, utilizando diversos modelos experimentais, que se mostraram pioneiros na demonstração que em determinadas situações fisiopatológicas pode ocorrer ruptura da barreira de permeabilidade intestinal. Esta ruptura pode propiciar a penetração de macromoléculas intactas potencialmente alergênicas, sendo um fator predisponente à Alergia Alimentar. Dentre os modelos experimentais utilizados destacam-se as situações de sobrecrescimento bacteriano no intestino delgado, a intolerância à lactose e a desnutrição proteico-calórica. Estes trabalhos foram publicados nos seguintes periódicos internacionais: Laboratory Investigation, 1981, American Journal of Clinical Nutriton, 1981 e Pediatric Research, 1983. Os achados decorrentes dessas pesquisas serviram de base para elucidar os mecanismos fisiopatológicos do surgimento das Alergias Alimentares. Vale referir que um destes trabalhos experimentais se transformou na minha Tese de Doutorado apresentada e aprovada com nota 10,0 no programa de Pós-Graduação da Disciplina de Gastroenterologia da EPM, em 1980. Baseado nestes novos conhecimentos pude compilar e posteriormente publicar, de forma inédita em nosso meio, uma casuística de 60 pacientes portadores de Enteropatia e Colite por Alergia à Proteína do Leite de Vaca, à Soja e à Carne de Frango, com suas respectivas manifestações clínicas, no nosso país no Jornal de Pediatria, em 1988.
Mais recentemente, juntamente com minha aluna de Doutorado, Christiane Leite e a com a Professora Edna Freymuller, descrevemos as graves alterações ultraestruturais do intestino delgado, tanto à microscopia eletrônica de transmissão quanto à microscopia eletrônica de varredura em crianças infectadas com o vírus HIV. Esse trabalho de pesquisa, absolutamente original em nosso meio, constituiu-se em sua tese de Doutorado e posteriormente foi publicado na revista Arquivos de Gastroenterologia, em 2013.
Finalmente, mas não menos importante, outro tema de pesquisa extremamente atual, no qual estou profundamente envolvido, diz respeito à má absorção/intolerância à Frutose e a um seu polímero os Frutanos, de prevalência especialmente frequente em pacientes portadores da Síndrome do Intestino Irritável. Juntamente com as médicas residentes Adriana Lozinsky e Cristiane Boé, o biomédico Ricardo Palmero publicamos uma série de 40 crianças portadoras de transtornos digestivos. Neste grupo de pacientes 13 (30,2%) deles apresentavam má absorção à frutose, sendo que a Síndrome do Intestino Irritável foi caracterizada em 11 deles. Trata-se também de uma descrição original em nosso meio que foi publicada na revista Arquivos de Gatroenterologia, em 2013.