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7.1- Meu querido mestre e amigo Horácio Toccalino: um exemplo de determinação e perseverança na vida pessoal e profissional
Assim que cheguei ao Posadas para trabalhar já no primeiro contato com Dr. Toccalino (Figuras 1-2) tive uma nítida sensação de que seria recebido com especial atenção, o que eu poderia traduzir com a expressão “empatia recíproca à primeira vista”.
De fato, o tempo somente fez confirmar esta primeira impressão. Ao longo de todo o ano, tanto no campo profissional como no pessoal, sempre mantivemos um relacionamento extremamente amistoso, dava até a percepção de que já nos conhecíamos de longa data, eu me sentia muito à vontade em sua companhia, principalmente quando juntos atendíamos os pacientes no ambulatório de gastroenterologia. No intervalo entre as consultas sempre arranjávamos alguns minutos para conversar sobre assuntos de trabalho, de planos futuros ou mesmo de temas absolutamente informais, até de problemas pessoais e familiares. Enfim, sinto que ele me adotou e que eu me apropriei desta adoção com muita satisfação, mesmo porque este relacionamento tão afetivo perdurou nos anos que se seguiram até sua morte prematura em dezembro de 1977. Sim, Dr. Toccalino faleceu muito jovem, aos 48 anos, com muitos projetos pessoais e profissionais para serem desenvolvidos, o mais caro, no entanto, era a fundação da Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição, a qual se logrou concretizar em outubro de 1975, em São Paulo, durante o transcurso do Congresso Pan-Americano de Pediatria. Anteriormente, porém, em 1974, durante a realização do Congresso Mundial de Pediatria, em Buenos Aires, em um determinado dia, nos reunimos para almoçar em uma churrascaria denominada El Gaucho Imortal, Toccalino, Licastro, Martins Campos (José Vicente Martins Campos, gastroenterologista brasileiro, embora sendo especialista de adultos, tinha grandes interesses em investigação na área da gastroenterologia pediátrica, de quem me tornei amigo e admirador, participava ativamente dos eventos pediátricos e era um grande amigo de Toccalino desde longa data. Vale lembrar que Dr. Martins Campos tornou-se posteriormente meu orientador no curso de Mestrado no IBEPEGE) e eu. Vínhamos de um encontro da Sociedade Latino Americana de Investigação Pediátrica, em Escobar, cidade localizada nas vizinhanças de Buenos Aires. Durante o almoço Toccalino manifestou seu descontentamento com os rumos daquela Sociedade, porque entendia que a gastroenterologia estava sendo cada vez mais marginalizada em detrimento de outras especialidades pediátricas, em especial a endocrinologia e a nefrologia. Toccalino sentia que havia chegado o momento de se fundar uma Sociedade especificamente voltada à gastroenterologia, já haveria uma massa crítica suficiente para tal empreendimento. Ele conhecia alguns colegas no Uruguai que certamente adeririam à ideia, também mesmo no Brasil já havia alguns embriões da especialidade sendo gestados (Figura 3).
Criaríamos uma Sociedade tendo como pilares de sustentação o eixo Argentina, Uruguai e Brasil, pouco a pouco colegas de outros países seguramente viriam também a se incorporar nessa nova proposta. Martins Campos prontamente concordou com a ideia, o mesmo ocorrendo com Licastro. Eu também concordei de imediato, porque afinal das contas quem era eu para emitir qualquer opinião a respeito de um assunto sobre o qual não tinha a menor experiência, fiz o que meu mestre mandou. Ato seguinte, Martins Campos lançou mão de um guardanapo de papel do restaurante e elaborou a primeira ata de fundação desta nova Sociedade com a subscrição dos quatro presentes. Ficou então combinado que no ano seguinte durante o transcorrer do Congresso Pan-Americano, em São Paulo, nós criaríamos oficialmente a Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica. Toccalino e Martins Campos se ocuparam de contatar os potenciais membros da futura Sociedade, convidando-os para a reunião oficial da sua fundação. Tínhamos praticamente um ano inteiro para desenvolver essa empreitada com êxito, era tempo suficiente. Eu fiquei encarregado de organizar a reunião, a qual se realizou na Escola Paulista de Medicina, no anfiteatro de Pediatria do Hospital São Paulo, em outubro de 1975 (Figura 4).
Vinte e cinco colegas latino americanos firmaram a constituição desta nova Sociedade; estava enfim, naquele dia, tornando-se realidade o tão almejado sonho de Toccalino (Vide cópia da ata abaixo).
Infelizmente, porém, naquela mesma ocasião ele tinha acabado de receber a notícia de que estava enfermo e o diagnóstico era de uma doença extremamente grave, ele sofria de um tipo muito raro de câncer, extremamente agressivo, incurável para os conhecimentos científicos daquela época e que teria uma evolução bastante rápida (Figura 5).
Entretanto, em um ato de enorme bravura e autocontrole, para não prejudicar os andamentos da fundação da Sociedade, o que era para ele uma questão primordial, decidiu não contar a ninguém o seu padecimento. Assim que terminou o Congresso, de São Paulo mesmo viajou diretamente para Nova Iorque, na tentativa desesperadora de encontrar alguma solução, ainda que paliativa fosse, para sua doença (Vide trecho da carta por ele escrita e a mim dirigida abaixo).
Desafortunadamente, porém, apesar do tratamento quimioterápico proposto e realizado, a cura era inviável, o prognóstico emitido foi que inexoravelmente o câncer progrediria, ele não teria muito mais tempo de vida, provavelmente não mais que seis meses (na realidade ainda viveu três anos mais após o diagnóstico). Mas, apesar de todo este sofrimento e frustração quanto ao futuro próximo, ele não deixou se abater animicamente, ao contrário, o florescimento da nova Sociedade passou a ser o grande estímulo da sua existência daí em diante. Durante sua estada em Nova Iorque me escrevia cartas, nas quais vislumbrava o sucesso futuro da nossa Sociedade, mas para que tal êxito fosse alcançado deveríamos seguir rigorosamente determinados postulados e a mim ele atribuía a responsabilidade de assim fazê-los cumprir.
Toccalino retornou dos Estados Unidos, recobrou suas forças, continuou sua missão de fortalecer nossa Sociedade de forma obstinada viajando frequentemente enquanto sua saúde assim o permitiu, para consolidar a recém nascida Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição. Eu assumi com ele um compromisso irrestrito, continuar a luta de manter viva a chama que com tanto sacrifício foi por ele acesa e, mais ainda, fazer florescer nossa Sociedade, tornando-a reconhecida mundialmente. O destino foi extremamente generoso comigo, também é verdade que o esforço foi gigantesco, mas valeu a pena o desafio. Nossa Sociedade passou a se reunir regularmente a cada dois anos nos mais diversos países da América Latina desde a Argentina até o México, estive presente na quase totalidade das reuniões, nestes trinta e seis anos somente me ausentei de duas delas, organizei o Congresso de 1996, em são Paulo, fui presidente da mesma de 1996 a 1998. A Sociedade Latino Americana de Gastroenterologia Pediátrica e Nutrição, em decorrência da sua importância conquistada como consequência do trabalho incessante de longo prazo desenvolvido pelos seus membros associados, tornou-se reconhecida pelas existentes congêneres internacionais, a saber: europeia, norte-americana e asiática. Assim, finalmente, a partir deste reconhecimento foi criado o evento Congresso Mundial, congregando todas as sociedades internacionais, o qual, foi inaugurado em 2000, em Boston (Figuras 6-7), seguindo-se em 2004, em Paris, com o compromisso de ser realizado a cada quatro anos, em forma de rodízio, em cada um dos continentes.
O terceiro Congresso Mundial foi realizado em Foz do Iguaçu, em agosto de 2008, o qual eu tive a imensa alegria e honra de presidir. Revestiu-se de um extraordinário sucesso, com mais de 2500 participantes, vindos de 102 países, tendo sido apresentados 1025 trabalhos de pesquisa na área. Na sessão de abertura do Congresso Mundial, durante meu discurso, pude então, com muito orgulho e tomado de emoção, reverenciar publicamente a figura de Horácio Toccalino, por tudo aquilo que havia batalhado e realizado em pró do engrandecimento da nossa Sociedade (Vide abaixo parte transcrita do discurso de abertura) (Figuras 8-9).
Finalmente, meu compromisso de vida com meu mestre e amigo Horácio Toccalino havia sido cumprido. A partir daquele momento passei a me sentir em paz com a minha consciência, a missão estava concretizada!
7.2- O término da Especialização em Buenos Aires, no Policlínico Alejandro Posadas
Em meados de outubro tive a grande alegria de receber a visita do Prof. Azarias Andrade de Carvalho, Chefe do Departamento de Pediatria da Escola Paulista de Medicina. Ele fez questão de conhecer o Policlínico Alejandro Posadas e conversar com Dr. Toccalino a respeito do meu aproveitamento. Ficou muito bem impressionado com as instalações que conheceu e também ficou bastante satisfeito em ouvir do Dr. Toccalino que meu rendimento estava sendo ótimo, sendo que ele até mesmo recomendava minha contratação quando voltasse ao Brasil, para implantar o Serviço de Gastroenterologia Pediátrica. Prof. Azarias muito gentilmente deu-me a segurança que eu necessitava, assim que houvesse concurso para ingresso na carreira do magistério superior ele apoiaria minha candidatura. Desta forma pude respirar aliviado e seguir os últimos dias da minha especialização com maior tranquilidade, assim escrevi em meu diário, em novembro de 1973:
“Creio que esta será a última vez que escrevo, a verdade é que o tempo é inexorável e sempre caminha em um mesmo sentido, tudo que começa tem que ter um final. No meu caso parece que o final está chegando e o faz muito mais rapidamente do que eu poderia esperar. Já estou aqui há 10 meses e logo mais estarei de volta. O interessante, e ao mesmo tempo pode parecer uma contradição, é que tudo se passou tão rapidamente que nem deu bem para sentir, mas, por outro lado, parece que estou aqui há muitos anos, ou melhor, que aqui sempre foi o lugar do meu trabalho; adaptei-me tão bem, sou muito bem tratado e respeitado que talvez seja essa a razão do meu sentimento… Nunca poderei me esquecer de todos estes médicos que constituem o serviço da gastropediatria (Figuras 10-11-12).
Por fim, o grande chefe do circo todo, o comandante genial, o cérebro de toda a coisa, o homem prático e matemático, o conselheiro de todas as horas, o amigo irrestrito. Este homem, Horácio Toccalino, eu não poderei nunca deixar de lembrar a cada momento da minha existência como médico e cidadão. Para que se tenha ideia, um dia quando me queixava de que no Brasil não havia possibilidades de se montar um serviço como o dele, ele me disse: Lá não é nada diferente daqui, o que é necessário é trabalhar, trabalhar, trabalhar e acima de tudo formar uma equipe coesa.
Pensei muito a respeito dessas palavras, depois de algum tempo cheguei à conclusão de que tudo é possível de se realizar basta haver determinação para tal. EU VOU FAZER O QUE ELE PREGA.”