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9.1 – A primeira visita ao Parque Indígena do Xingu: meu encantamento com aquela gente
Estávamos nos meados de Dezembro de 1970, eu, juntamente com meus colegas de turma, comemorava o fim do nosso curso de Medicina pela Escola Paulista de Medicina (EPM) com uma chopada e música, em frente ao Hospital São Paulo (Figura 1), quando veio um comunicado urgente do Parque Indígena do Xingu (PIX) informando que havia uma grave epidemia de gripe afetando a população indígena das tribos do Alto Xingue solicitando o envio imediato de médicos para prestar assistência aos enfermos.
Dr. Roberto Baruzzi, coordenador das atividades de atenção à saúde da EPM no PIX, buscava desesperadamente médicos que pudessem atender este pedido de urgência, e, como não houvesse encontrado auxílio disponível naquele momento, decidiu lançar mão dos recém formados que estavam festejando o término de um longo percurso de 6 anos como acadêmicos do curso médico. Eu fui contatado e de pronto aceitei aquele que seria meu primeiro desafio como médico, que vinha acumulado com alguns agravantes, tais como, trabalhar em um local fora dos meus domínios corriqueiros, com uma população de cultura e idioma totalmente diferentes daquela que eu estava acostumado a lidar até então, mais ainda, não teria a supervisão de meus tutores para discutir minhas prováveis dúvidas de conduta. Porém, como era muito grande meu desejo de conhecer oPIX e seus habitantes, no dia seguinte voamos para lá. A primeira impressão da região, vista do alto, foi esplendorosa, a vegetação intacta, as curvas do rio Xingu, a imagem das aldeias, tudo isso mostrava-se fascinante, parecia um sonho, dava a sensação de haver entrado na máquina do tempo, como se eu houvesse voltado à época dos primeiros conquistadores (Figuras 2-3-4).
De fato, quando lá chegamos eu e Rubens Belfort (Figuras 5-6), meu colega de turma, éramos apenas os dois para cuidar da população das 9 aldeias que compõe a região do Alto Xingu, a situação mostrava-se dramática à primeira vista.
Havia um grande número de crianças e adultos atingidos pela epidemia, a maioria de forma leve, porém alguns mais gravemente enfermos necessitavam de assistência mais cuidadosa. Adaptamos no Posto Leonardo uma grande enfermaria em um dos galpões que serviam de alojamento para os visitantes, ali internávamos os casos mais graves que necessitavam medicação intravenosa (Figuras 7-8-9).
Os casos mais leves eram cuidados nas próprias aldeias que visitávamos duas vezes por dia (Figuras 10-11).
Foi uma experiência fantástica, heroica mesmo, ao cabo de 2 semanas de trabalhos ininterruptos pudemos celebrar uma grande vitória, pois não havíamos perdido nenhum paciente, a epidemia havia sido superada com mortalidade zero. Pudemos assim voltar a São Paulo para participar das cerimônias de formatura com as glórias de havermos vencido nosso primeiro grande desafio como médicos.
À parte desta experiência assistencial durante todo o tempo que lá estive, cada vez mais me impressionavam alguns aspectos socioculturais daquela gente. Aprendi que o aleitamento natural é verdadeiramente “natural”, pois era prática universal naquela comunidade, não havia outro tipo de alimentação (os índios não têm atividade pecuária) para os lactentes e, além disso, era realmente prolongado porque havia visto inúmeras crianças que já caminhavam e ainda mamavam no seio materno (Figuras 12-13).
Como me especializaria em Pediatria, prestava muita atenção nas criançase percebia o quanto elas transmitiam um ar de rara e constante felicidade, viviam aos bandos brincando o dia inteiro, fosse no pátio ou nos lagos próximos da aldeia, não havia brigas, riam o tempo todo, desfrutavam de plena liberdade de ir e vir (Figuras 14-15-16).
Aprendi também que as crianças eram o centro das atenções de toda a comunidade, eram tratadas com enorme carinho e compreensão pelos adultos, nunca vi uma criança ser espancada por seus pais (Figuras 17-18).
A olho nu a impressão que me era transmitida transbordava o bem estar e o aspecto saudável das crianças desde tenra idade até as maiores. Percebia que o tipo de alimentação embora monótona quanto à variedade era altamente nutritivo e salutar, composta por mandioca, peixe e frutas silvestres, dentre estas destacando o pequi (fonte rica em vitamina A), havia abundância de comida mas não havia desperdício (Figuras 19-20-21-22-23-24-25-26-27-28-29).
Na verdade, eu que havia viajado para cuidar de uma população enferma e pretensiosamente acreditava que iria ensinar coisas a uma população de cultura primitiva, acabei aprendendo uma lição de vida que me serviu como um grande ensinamento pessoal e profissional futuro. Enfim, eu definitivamente me apaixonei por aquela “civilização” que veio desmitificar todos os ensinamentos preconceituosos que eu havia aprendido nos livros de História do Brasil nos bancos escolares. Eles conquistaram meu coração e minha mente (Figuras 30-31).
Nos anos seguintes, ainda durante a minha formação na Residência Médica, voltei ao PIX como parte integrante da expedição EPM que rotineiramente para lá se dirigia com o intuito de vacinar a população e cuidar das possíveis intercorrências médicas. Aquela primeira impressão se reafirmava agora ainda com maior intensidade, visto que já havia adquirido alguma experiência clínica, assim, podia ter um melhor juízo de valores quanto às condições de saúde das crianças índias. Foi a partir desta vivência clínica de que Eutrofia era o padrão nutricional vigente nesta comunidade é que desenhamos um projeto de pesquisa para avaliar de forma objetiva e cientificamente comprovada esta sensação subjetiva que tanto nos chamava a atenção.