Reações de Fermentação: aquilo que vale a pena saber a respeito delas
Ulysses Fagundes Neto
Diretor Médico do IGASTROPED
Introdução
A fermentação é um processo de obtenção de energia que ocorre sem a presença de oxigênio (O2), portanto, trata-se de uma via de produção de energia denominada anaeróbia. A fermentação compreende um conjunto de reações enzimaticamente controladas, através das quais uma molécula orgânica é degradada em compostos mais simples, liberando energia. Nesse processo, o aceptor final de elétrons é uma molécula orgânica. Essa via é muito utilizada por fungos, bactérias e células musculares esqueléticas do corpo humano, quando estas últimas estão em contração vigorosa e prolongada. A glicose é uma das substâncias mais empregadas pelos micro-organismos como ponto de partida da fermentação. É importante ressaltar que as reações químicas da fermentação são equivalentes às da glicólise, as quais ocorrem no fígado do organismo humano. A desmontagem da glicose é parcial e são produzidos resíduos de tamanho molecular maior que aqueles gerados na respiração aeróbia e o rendimento final da fermentação em produção de Adenosina Trifosfato (ATP) é baixo.
Na glicólise, cada molécula de glicose é desdobrada em 2 moléculas de ácido pirúvico, com liberação de hidrogênio e energia, por meio de várias reações químicas.
O hidrogênio combina-se com moléculas transportadoras de hidrogênio (NAD), formando NADH + H+, ou seja, NADH2 (Figura 1).
No caso das células musculares estriadas, a fermentação ocorre no citosol e inicia-se com a glicólise, isto é, a quebra de glicose em duas moléculas de piruvato. Percebe-se, portanto, que inicialmente esse processo é semelhante à respiração celular. O piruvato recebe elétrons H+ provenientes da enzima aceptora de hidrogênio (NADH) e transforma-se em ácido láctico, que posteriormente é eliminado pela célula. Quando o ácido pirúvico é transformado em ácido láctico, dizemos que ocorreu uma fermentação láctica. A fermentação láctica é comum em células musculares quando submetidas a um esforço intenso e prolongado.
O piruvato pode também se transformar em álcool e CO2, que também são posteriormente eliminados. A substância a ser produzida depende do organismo em que o processo ocorre, mas quando se transforma em álcool, a fermentação é chamada de alcoólica.
Tanto na fermentação alcoólica quanto na láctica o NADH doa seus elétrons e é convertido em NAD+ (Figura 2).
Diferentemente do ser humano, na indústria alimentícia a fermentação láctica é realizada pela utilização de bactérias, protozoários e fungos, para a produção de iogurte, coalhada e queijos. No caso da fermentação alcoólica, esta é usualmente realizada por leveduras e bactérias, sendo bastante explorada economicamente pela indústria, principalmente para a fabricação de alimentos como o pão, bolos e bebidas, tais como a cerveja, o vinho e os destilados.
É importante enfatizar que o rendimento da fermentação é bastante pequeno quando comparado ao da respiração aeróbica (Figura 3).
Enquanto que no processo de fermentação são obtidas apenas 2 moléculas de ATP, na respiração aeróbica, há um saldo final muito maior, de 38 ATP (Figura 4).
Curiosidade: Quando o ser humano está praticando exercícios físicos extenuantes, frequentemente pode sentir dor muscular, que também é chamada de fadiga muscular. Isso ocorre porque as células musculares não recebem a quantidade necessária de oxigênio para realizar a respiração aeróbica e, então, passam a quebrar glicose de forma anaeróbia, produzindo ácido láctico. O acúmulo desse ácido faz com que as pessoas sintam dor muscular (Figura 5).
A fermentação láctica nas células musculares é um processo que ocorre de forma alternativa, frente a situações em que o organismo não realiza respiração aeróbica. Este processo é considerado um artifício metabólico de curto prazo, que é ativado quando o organismo é submetido a um intenso esforço físico em condições de baixa oxigenação muscular.
De acordo com Pasteur, tanto a velocidade da fermentação quanto a quantidade total de glicose por ela consumida eram muitas vezes maiores em condições anaeróbicas do que sob condições aeróbicas. O chamado efeito Pasteur ocorre porque o rendimento em ATP da glicólise, sob condições anaeróbicas (2 ATP por molécula de glicose) é muito menor do que a obtida na oxidação completa da glicose até o CO2 e H2O, sob condições aeróbicas (36 a 38 ATP por molécula de glicose). Portanto, para produzir a mesma quantidade de ATP, é necessário consumir perto de 18 vezes mais glicose em condições anaeróbicas do que em condições aeróbicas.
Vale ressaltar que a desvantagem anaeróbia em relação à aeróbia, consiste não somente na quantidade de ATP, mas aos efeitos fisiológicos causados. Em decorrência a extensos períodos de atividade fermentativa (exercícios físicos prolongados), as células musculares passam a acumular uma concentração muito elevada de ácido láctico, prejudicando o funcionamento da célula.
Entre os efeitos provocados em defesa do metabolismo, o organismo passa a sentir dor e fadiga muscular, causada por uma contração arrítmica (gradativa ou repentina) atuando como sinal de alerta, induzindo o fim da atividade para o repouso e o restabelecimento da capacidade fisiológica do órgão (Figura 6).
Isso ocorre à medida em que o excesso de ácido láctico se difunde para o fígado, onde é convertido em ácido pirúvico e posteriormente em glicose armazenada na forma de glicogênio, sendo a conversão denominada de gliconeogênese (Figura 7).
Por outro lado, no que diz respeito à fermentação alcoólica os seres humanos têm se beneficiado deste processo há milhares de anos por meio da utilização de leveduras para produzir pão, cerveja e vinho, mas somente passaram a ter conhecimento da intimidade desta reação a partir dos últimos duzentos anos.
A fermentação alcoólica, também conhecida como fermentação do etanol, é a via anaeróbia realizada por leveduras, na qual açúcares simples são convertidos em etanol e dióxido de carbono (Figura 8).
Em alguns casos a fermentação é usada para modificar um material cuja transformação seria difícil ou muito cara, caso fossem escolhidos métodos químicos convencionais. A fermentação é sempre iniciada por enzimas que atuam como catalisadores naturais que provocam uma mudança química sem serem afetados por isto.
Os produtos da fermentação têm sido usados desde a antiguidade. Habitantes das cavernas descobriram que a carne envelhecida tem um sabor mais agradável que a carne fresca. Vinho, cerveja, e pão são tão velhos quanto a agricultura, e inclusive, foram encontrados pães nas pirâmides egípcias construídas há milhares de anos (Figura 9).
O queijo, que envolve a fermentação do leite, é outro alimento muito antigo e sua fabricação na China e no Japão era conhecida há milhares de anos. O valor medicinal de produtos fermentados é conhecido desde longa data. Os chineses usavam coalho de feijão-soja mofado para curar infecções de pele há 3.000 anos. Os nativos da América Central tratavam feridas infectadas com fungos.
O conhecimento íntimo da química das fermentações é uma ciência nova que ainda está em suas fases mais iniciais. É a base dos processos industriais que convertem matérias-primas como grãos, açúcares e subprodutos industriais em muitos produtos sintéticos diferentes. Cepas cuidadosamente selecionadas de mofos, leveduras e bactérias são usadas para estas transformações.
As primeiras plantas industriais a utilizar a tecnologia da fermentação foram as fábricas de cerveja. No entanto, foi somente no final do século XIX e início do século XX que essa tecnologia passou a ser gradativamente utilizada, tanto na indústria de bebidas e de alimentos, como na indústria química. A indústria química, nos primórdios do século XX, principiou a produção de solventes orgânicos. No início da I Guerra Mundial as necessidades de produzir acetona, composto orgânico importante para a produção de explosivos, estimularam substancialmente a pesquisa no potencial da tecnologia de fermentação.
Em 1923, Pfizer inaugurou a primeira fábrica para a produção de ácido cítrico por via fermentativa. O processo envolvia a fermentação utilizando o fungo Aspergillus niger, por meio do qual o açúcar era transformado em ácido cítrico.
Foi em uma descoberta casual que um funcionário de um mercado encontrou um melão embolorado por uma linhagem de Penicillium, a qual podia prosperar quando cultivada em tanques fundos com aeração, e que produzia duzentas vezes mais penicilina que o bolor de Fleming cultivado em meio sólido.
O progresso da fermentação prossegue a passadas largas. A cada ano novos produtos são incorporados à lista de produtos derivados da fermentação. Várias vitaminas são produzidas pelo emprego de etapas de fermentação em sua síntese (vitamina B-2 a riboflavina, vitamina B-12 a cianocobalamina e a vitamina C o ácido ascórbico).
Alguns dos bioprocessos mais interessantes são as desidrogenações e hidroxilações específicas do núcleo esteróide. Essas transformações são vias econômicas utilizadas na obtenção da cortisona, um potente agente anti-inflamatório e seus derivados.
O ácido cítrico é uma das muitas substâncias químicas produzidas por micro-organismos. É usado em limpadores de metal, bem como trata-se de um preservativo de alimentos, além de ser também um agente capaz de conferir melhor palatabilidade aos alimentos. O ácido cítrico é responsável pelo sabor azedo das frutas cítricas. Poderia ser obtido delas, mas necessitaria muitos milhares de frutos para produzir a mesma quantidade de ácido cítrico obtida pela fermentação do melado com o mofo do Aspergillus niger.
Na Tabela 1 estão listados os tipos de fermentação conhecidos.
Fermentação Alcoólica
O termo fermentação vem do latim “fervere”, que significa ferver.
Foi Pasteur, há pouco mais de um século, quem demonstrou que a fermentação alcoólica é realizada por micro-organismos na ausência de oxigênio. Atualmente, por fermentação alcoólica entende-se um conjunto de reações bioquímicas provocadas por micro-organismos chamados leveduras, que atacam fundamentalmente os carboidratos da uva (glicose e frutose), transformando-os principalmente em álcool etílico e gás carbônico. Na superfície da casca da uva, existe uma grande quantidade destes fungos. O bagaço da uva não é liso, sua epiderme é recoberta por uma matéria cerosa chamada previna, que retém os micro-organismos. Na previna, junto às leveduras úteis, encontram-se diversos outros micro-organismos, sendo alguns deles desfavoráveis do ponto de vista técnico, como é o caso da bactéria acética (Figura 10).
O processo de fermentação alcoólica caracteriza-se como uma via catabólica, na qual há degradação das moléculas do carboidrato (glicose ou frutose), no interior da célula dos micro-organismos (levedura ou bactéria) até a formação de etanol e CO2, acarretando liberação de energia química e térmica.
O piruvato (proveniente da glicólise) sofre descarboxilação em uma reação irreversível catalisada pela enzima piruvato descarboxilase. É uma reação de descarboxilação simples e não envolve a oxidação do piruvato. A piruvato descarboxilase requer Mg2+ e possui uma coenzima firmemente ligada, a tiamina pirofosfato (TPP), que é um cofator essencial para a piruvato-descarboxilase. Esse cofator irá proporcionar estabilidade à reação de troca de carga negativa.
Por meio da ação da álcool-desidrogenase, o acetaldeído é reduzido a etanol, com o NADH, derivado da atividade da gliceraldeído-3-fosfato desidrogenase, fornecendo o poder redutor. Portanto, os produtos finais da fermentação alcoólica são:
Glicose + 2ADP + 2 Pi = 2 etanol + 2 CO2 + 2 ATP + 2 H2O
É importante ressaltar que, como a quantidade de NADH é limitada e ele é necessário estar presente na sua forma oxidada (NAD+) na glicólise e, consequentemente, na continuação do processo de produção de energia, o NADH tem que ser oxidado. Essa é a importância da realização da fermentação.
O CO2 produzido na descarboxilação do piruvato pelas leveduras é o responsável pela carbonatação caraterística do champanhe e da cerveja, assim como pelo crescimento da massa do pão e do bolo (Figura 11).
O processo de fabricação da cerveja, cujos subprodutos álcool etílico e CO2 (gás carbônico) são obtidos a partir do consumo de açúcares presentes no malte, é realizado através da cevada germinada. Este é o mesmo processo usado no preparo da massa do pão e do bolo, onde as leveduras ou fungos consomem o carboidrato obtido do amido da massa do trigo, liberando CO2 (gás carbônico), o que aumenta o volume da massa.
A enzima álcool-desidrogenase está presente em muitos organismos que metabolizam o álcool, incluindo o ser humano. No fígado humano esta enzima catalisa a oxidação do etanol, quer ele seja ingerido quer ele seja produzido por micro-organismos intestinais, com a concomitante redução do NAD+ para NADH.
As leveduras que se destacam como produtoras do etanol são as espécies do gênero Saccharomyces, Schizosaccharamyes, Pichia e outras (Figura 12).
Os critérios tecnológicos que fazem com que uma levedura seja utilizada comercialmente na fermentação alcoólica são o alto rendimento e a elevada produtividade, ou seja, rápida conversão de açúcar em álcool, com baixa produção de componentes secundários. A espécie mais importante de levedura alcóolica é a Saccharomyces cerevisiae, que possui um largo espectro de utilização, sendo empregada na produção de pães, bebidas alcoólicas, etanol, etc. Sua biomassa pode ser recuperada como subproduto da fermentação e transformada em levedura seca, que se constitui em matéria-prima para a fabricação de ração animal ou suplemento vitamínico para o ser humano.
A bactéria Zymomonas mobilis, que inicialmente foi isolada em mostos fermentadores de cidra, sucos fermentados de palmeiras, em cervejarias e engenhos de aguardente, apresentou habilidades promissoras de transformar açúcares em etanol e gás carbônico, em condições comparáveis a aquelas exibidas pelas leveduras. Zymomonas mobilis apresenta alto rendimento, tolerância a altas concentrações de glicose, habilidade de crescer em total anaerobiose, características que potencializam seu emprego em escala industrial.
Mecanismo da fermentação alcoólica
Atualmente a indústria enológica vai se direcionando cada vez mais para a utilização de fermento selecionado (leveduras selecionadas), no processo de vinificação (Figura 13).
A fermentação alcóolica ocorre devido ao fato de que as células do levedo produzem a energia que lhes é necessária para sobreviver, através de dois fenômenos de degradação da matéria orgânica: 1- a respiração que necessita do O2 do meio ambiente, ou 2- a fermentação que ocorre na ausência de O2.
Como anteriormente assinalado, em virtude de a fermentação alcóolica corresponder a uma baixa produção de energia, a levedura necessita transformar muito açúcar em álcool, para poder assegurar suas necessidades energéticas. Nessas condições a capacidade de multiplicação da levedura é baixa. Por outro lado, o rendimento da transformação do açúcar em álcool é grande em relação ao peso da levedura. A composição exata do açúcar foi determinada por Gay-Lussac. É ainda de sua autoria a equação que descreve a fermentação alcóolica:
C6H12O6 (glicose) = 2 C2H5OH (álcool etílico) + 2 CO2
Ou seja, para cada 180g de glicose, resultam 92g de álcool etílico e 88g de CO2. Esta reação, apesar de representar a parte fundamental do processo não é, porém, completa, pois outras substâncias se formam além do álcool etílico e CO2.
A proporção de álcool contida no vinho é medida em graus alcoólicos, segundo o princípio de Gay-Lussac. Assim, por exemplo, quando se diz que um vinho tem 11ºGL significa que contém 11% do seu volume em álcool, ou seja, que em 100 ml do vinho considerado, 11 ml são álcool puro (anidro) (Figura 14).
Produção de etanol
Depois da água, o álcool é o solvente mais comum, além de representar a matéria-prima de maior uso no laboratório e na indústria química. Na biossíntese do etanol são empregadas linhagens selecionadas de Saccharomyces cerevisae, que realizam a fermentação alcoólica, a partir de um carboidrato fermentável. É muito importante que a cultura da levedura possua um crescimento vigoroso e uma elevada tolerância ao etanol, pois desta forma a fermentação irá apresentar um grande rendimento final.
O etanol, em altas concentrações, é inibidor e a tolerância das leveduras é um ponto crítico para uma produção elevada deste metabólito primário. A tolerância ao etanol varia consideravelmente de acordo com as linhagens de leveduras. De modo geral, o crescimento cessa quando a produção atinge 5% de etanol (v/v), e a taxa de produção é reduzida a zero, na concentração de 6 a 10% de etanol (v/v).
O etanol pode ser produzido a partir de qualquer carboidrato fermentável pela levedura, a saber: sacarose, sucos de frutas, milho, melaço, beterrabas, batatas, malte, cevada, aveia, centeio, arroz, sorgo, entre outros (necessário hidrolisar os carboidratos complexos em açúcares simples fermentáveis, pelo uso de enzimas da cevada ou fúngicas, ou ainda pelo tratamento térmico do material acidificado).
Material celulósico, como madeira e resíduos da fabricação da pasta de papel podem ser utilizados. Por causa da grande quantidade de resíduos de material celulósico disponível, a fermentação direta desses materiais quando hidrolisados por enzimas celulolíticas pode ser de grande importância econômica.
Culturas mistas de Clostridium thermocellum e Clostridium thermosaccharolyticum podem ser usadas. Hemiceluloses e celuloses são hidrolisadas em monossacarídeos (hexoses e pentoses) por essas bactérias e os monossacarídeos são fermentados diretamente a etanol.
O etanol é também usado como combustível, e, no Brasil, a maior parte da produção de etanol é destinada para a indústria de combustíveis. Essa preferência é pelo fato de o etanol não produzir dióxido de enxofre quando é queimado, ao contrário da gasolina que polui a atmosfera.
A produção de etanol feita a partir da cana-de-açúcar obedece aos seguintes procedimentos:
- Moagem da cana: A cana passa por um processador, nessa etapa obtém-se o caldo de cana, também conhecido como garapa que contém um alto teor de sacarose, cuja fórmula é: C12H22O11.
- Produção de melaço: O produto obtido no primeiro passo, a garapa, é aquecido para se obter o melaço, que consiste numa solução de aproximadamente 40% em massa, de sacarose. O açúcar mascavo é produzido quando parte dessa sacarose se cristaliza.
- Fermentação do melaço: Neste momento, fermentos biológicos são acrescentados ao melaço, como por exemplo, o Saccharomyces, que é um tipo de levedura que faz com que a sacarose se transforme em etanol. A ação de enzimas é que realiza esse trabalho. Após esse processo, se obtém o mosto fermentado, que já contém até 12% de seu volume total em etanol.
- Destilação do mosto fermentado: Nesta fase o produto, que no caso é o mosto, vai passar pelo processo de destilação fracionada e vai dar origem a uma solução cuja composição será: 96% de etanol e 4% de água. Existe uma denominação que é dada em graus, é o chamado teor alcoólico de uma bebida. No caso do etanol é de 96° GL (Gay-Lussac).
A cachaça é produzida da mesma forma que o álcool, com a única diferença, pois a coluna de destilação fracionada usada não precisa ser tão eficiente, podendo deixar passar mais água (em geral 60%, pois a cachaça tem teor alcoólico aproximadamente de 40º GL). A cachaça é considerada uma bebida alcoólica destilada (Figura 15).
Por outro lado, o vinho é uma bebida alcoólica não-destilada. O suco de uva sofre fermentação, após o que o líquido é filtrado e colocado em barris e garrafas. Pelo fato de não sofrer destilação, o sabor e o aroma de um vinho dependem muito do tipo de uva utilizado, pois as substâncias responsáveis pelo aroma e sabor da uva estarão presentes também no vinho, uma vez que não são separadas por destilação.
As bebidas não-destiladas apresentam teor alcoólico inferior ao das destiladas. Isso ocorre porque, quando o teor alcoólico chega a cerca de 15ºGL, os micro-organismos morrem e a fermentação se encerra. Na destilação, como o álcool é mais volátil que a água, o teor alcoólico aumenta.
Fermentação Malo-láctica
Muitos vinhos sofrem uma fermentação secundária, após a primeira que é a alcoólica.
Essa fermentação é provocada por bactérias lácticas, como por exemplo: Leuconostoc oinos, que transformam o ácido málico (dicarboxílico) em ácido láctico (monocarboxílico), de sabor mais aveludado, e em CO2. Em várias regiões do mundo, por motivos de origem climática, frequentemente são obtidos vinhos tintos com elevada acidez, que irão desta forma se beneficiar com essa segunda fermentação, posto que esta provoca uma redução na acidez (desacidificação biológica). Essa fermentação é normalmente desejável nos vinhos tintos, porém, nem sempre o é para os vinhos brancos.
Fermentação Láctica
A fermentação láctica é o processo metabólico no qual carboidratos e compostos relacionados são parcialmente oxidados, resultando em liberação de energia e compostos orgânicos, principalmente ácido láctico, sem qualquer aceptor de elétrons externo. É realizada por um grupo de microrganismos denominados bactérias ácido-lácticas, as quais têm importante papel na produção/conservação de produtos alimentares, ou pelas fibras musculares em situações de intensa atividade física, nas quais não há suprimento de oxigênio suficiente para que ocorra a respiração celular, levando a acúmulo de ácido láctico na região, o que provoca dores, cansaço e câimbras (Figura 18).
A fermentação láctica pode ser classificada em dois tipos, de acordo com a quantidade de produtos orgânicos formados, a saber: homolática e heteroláctica.
Microrganismos fermentadores
O grupo das bactérias ácido-lácticas é composto por 12 gêneros de bactérias Gram-positivas: Carnobacterium, Enterococcus, Lactococcus, Lactobacillus, Lactosphaera, Leuconostoc, Oenococcus, Pediococcus, Streptococcus, Tetragenococcus, Vagococcus e Weissella. Todos os membros desse grupo apresentam a mesma característica de produzir ácido láctico a partir de hexoses. Streptococcus thermophilus é o microrganismo mais importante nos alimentos. Algas e fungos (leveduras e ficomicetos) são também capazes de sintetizar ácido láctico. Produção comparável à das bactérias homofermentativas é obtida pelo fungo Rhizopus oryzae em meio de glicose. Sua utilização é preferível à das bactérias homofermentativas, porque o tempo gasto na fermentação é menor e a separação do produto, mais simples.
Fases da fermentação láctica
A fermentação láctica, tal como a alcoólica, realiza-se em duas fases:
1º Fase: Glicólise
A equação global final quando a glicólise é o substrato:
Glicose + 2NAD+ + 2ADP + 2Pi = 2 Piruvato + 2 NADH + 2H+ + 2ATP + 2 H2O
2º Fase: Fermentação láctica
Após a glicólise, a redução do piruvato é catalisada pela enzima lactato-desidrogenase. O equilíbrio global dessa reação favorece fortemente a formação de lactato. Microrganismos fermentadores regeneram continuamente o NAD+ pela transferência dos elétrons do NADH para formar um produto final reduzido, como o são o lactato e o etanol.
Reação de síntese do ácido láctico na fermentação
O rendimento em ATP da glicólise sob condições anaeróbicas resulta em apenas 2 ATP por molécula de glicose, muito inferior do que o obtido na oxidação completa da glicose sob condições aeróbicas, que resulta em 36 ou 38 ATP por molécula de glicose. Portanto, para produzir a mesma quantidade de ATP, é necessário consumir próximo de 18 vezes mais glicose em condições anaeróbicas do que nas condições aeróbicas (Figura 19).
Tipos de fermentação Láctica
A classificação da fermentação láctica é feita com base nos produtos finais do metabolismo da glicose:
- Fermentação homoláctica: processo no qual o ácido láctico é o único produto da fermentação da glicose. As bactérias homolácticas podem extrair duas vezes mais energia de uma quantidade definida de glicose do que as heterolácticas. O comportamento homofermentativo é observado quando a glicose é metabolizada, mas não necessariamente quando as pentoses o são, já que algumas bactérias homolácticas produzem ácidos acético e láctico quando utilizam pentoses. O caráter homofermentativo de algumas linhagens pode ser mudado pela alteração das condições de crescimento, tais como a concentração de glicose, o pH e a limitação de nutrientes. Todos os membros dos gêneros Pediococcus, Streptococcus, Lactococcus e Vagococcus são homofermentadores, assim como alguns Lactobacillus, são muito importantes para a formação da acidez nos laticínios.
- Fermentação heteroláctica: processo no qual ocorre produção da mesma quantidade de lactato, CO2 e etanol a partir de hexoses. As bactérias heterolácticas são mais importantes do que as homolácticas na produção de componentes de aroma e sabor, tais como o acetilaldeído e o diacetil. Os heterofermentadores são Leuconostoc, Oenococcus, Weissela, Carnobacterium, Lactosphaera e alguns Lactobacillus. O processo de formação de diacetil a partir do citrato na indústria de alimentos é fundamental para a formação do odor, como por exemplo, na fabricação de manteiga.
Aplicação industrial da fermentação láctica
Alguns alimentos podem se deteriorar pelo crescimento e pela ação das bactérias ácido-lácticas. No entanto, a importância deste grupo de microrganismos consiste em sua grande utilização na indústria alimentar. Muitos alimentos devem sua produção e suas características às atividades fermentativas dos microrganismos em questão. Queijos maturados, conservas, chucrute e linguiças fermentadas são alimentos que possuem uma vida de prateleira consideravelmente maior que a matéria-prima da qual eles foram feitos. Além de serem mais estáveis, todos os alimentos fermentados possuem aroma e sabor característicos que resultam direta ou indiretamente dos organismos fermentadores. Em alguns casos, o conteúdo de vitaminas dos alimentos cresce juntamente com o aumento da digestibilidade da sua matéria-prima. Nenhum outro grupo ou categoria de alimentos é tão importante ou tem sido tão relacionado ao bem-estar nutricional em todo o mundo quanto os produtos fermentados (Figura 20).
Fermentação acética
Consiste na oxidação parcial, aeróbica, do álcool etílico, com produção de ácido acético. Esse processo é utilizado na produção do vinagre comum e do ácido acético industrial. Desenvolve-se também na deterioração de bebidas de baixo teor alcoólico e na de certos alimentos. A fermentação acética é realizada por um conjunto de bactérias do gênero Acetobacter ou Gluconobacter, pertencentes a família Pseudomonaceae que produz ácido acético e CO2 (Figura 21).
Desde a antiguidade a humanidade sabe fabricar vinagre, e, para obter tal efeito, basta deixar o vinho azedar. Nessa reação, o etanol reage com o O2 transformando-se em ácido acético.
O vinagre é azedo, pois trata-se de uma solução aquosa de ácido. Assim, para evitar que um vinho se estrague, devemos impedir a entrada de O2 na garrafa, o que é feito deixando-a na posição horizontal. Se determinarmos os números de oxidação dos átomos presentes nas substâncias envolvidas na reação de fermentação acética, veremos que um dos carbonos e o oxigênio sofreram alterações.
Podemos dizer que o O2 atuou como agente oxidante, pois causou a oxidação do álcool. Muitos outros agentes oxidantes seriam capazes de executar essa oxidação, como, por exemplo, o permanganato de potássio em meio ácido ou o dicromato de potássio em meio ácido.
A fermentação acética corresponde à transformação do álcool em ácido acético por determinadas bactérias, conferindo o gosto característico do vinagre. As bactérias acéticas constituem um dos grupos de microrganismos de maior interesse econômico, de um lado pela sua função na produção do vinagre e, de outro, pelas alterações que provocam nos alimentos e bebidas.
A bactéria acética ideal é aquela que resiste à elevada concentração de álcool e de ácido acético, com pouca exigência nutritiva, elevada velocidade de transformação do álcool em ácido acético, bom rendimento de transformação, sem hiperoxidar o ácido acético formado, além de conferir boas características gustativas ao vinagre. Essas bactérias acéticas necessitam do O2 do ar para realizar a acetificação. Por isso multiplicam-se mais na parte superior do vinho que está sendo transformado em vinagre, formando um véu conhecido como “mãe do vinagre”. Esse véu pode ser mais ou menos espesso de acordo com o tipo de bactéria.
O ácido acético produzido por bactérias desse gênero é o composto principal do vinagre, condimento obtido a partir da fermentação alcoólica do mosto açucarado e subsequente “fermentação acética”.
Microorganismos
As bactérias acéticas utilizadas neste processo são aeróbias e alguns gêneros possuem como importante característica a ausência de algumas enzimas do ciclo dos ácidos tricarboxílicos, tornando incompleta a oxidação de alguns compostos orgânicos (baixa oxidação).
Por isso, são úteis não apenas para a bioconversão, produzindo ácido acético, mas, também, para outras, como ácido propiônico a partir do propanol, sorbose a partir de sorbitol, ácido glucônico a partir da glicose, além de outros.
As bactérias do ácido acético, assim originalmente definidas, compreendem um grupo de microrganismos aeróbios, Gram negativos, bastonetes, que apresentam motilidade, realizam uma oxidação incompleta de álcoois, resultando no acúmulo de ácidos orgânicos como produto final.
Outra propriedade é a relativa alta tolerância às condições ácidas, pois a maioria das linhagens são capazes de crescer em valores de pH<5.
Atualmente, o gênero Acetobacter, compreende as bactérias acéticas que apresentam flagelos peritrícos, com capacidade para oxidar o ácido acético.
Um outro gênero presente no grupo das bactérias do ácido acético, denominado primeiramente Acetomonas e mais recentemente Gluconobacter, apresentam flagelos polares, e são incapazes de oxidar o ácido acético, devido à ausência do ciclo completo dos ácidos tricarboxílicos.
Outra característica interessante de algumas espécies do grupo das bactérias acéticas, aeróbias estritas, é a capacidade para sintetizar celulose. A celulose formada não difere significantemente da celulose dos vegetais.
O A. xylinum forma sobre a superfície de um meio líquido, uma capa de celulose, o que pode ser uma forma do organismo assegurar a sua permanência na superfície do líquido, onde o O2 está mais disponível.
Características gerais do gênero Acetobacter
As bactérias do gênero Acetobacter são bastonetes elipsoidais, retos ou ligeiramente curvos. Quando jovens são Gram negativos e as células idosas são Gram variáveis. Apresentam a capacidade de oxidar a molécula do etanol e do ácido acético a CO2 e H2O (superoxidação). São comumente encontradas em frutas e vegetais e estão envolvidos na acidificação bacteriana de sucos de frutas e bebidas alcoólicas, cerveja, vinho, produção de vinagre e fermentação de sementes de cacau.
Os Acetobacter são capazes de fermentar vários açúcares, formando ácido acético, ou ainda, utilizam este ácido como fonte de carbono, produzindo CO2 e H2O.
As espécies capazes de oxidar o ácido acético, estão subdivididos em dois grupos, a saber: a) organismos capazes de utilizar sais de amônio como única fonte de nitrogênio, e b) um outro grupo sem esta capacidade.
A espécie representativa do gênero Acetobacter é o Acetobacter aceti, que é capaz de utilizar sais de amônio como única fonte de nitrogênio, juntamente com outras espécies, tais como, Acetobacter mobile, Acetobacter suboxidans, etc.
Características gerais do gênero Gluconobacter
As bactérias acéticas deste gênero são bastonetes elipsoidais Gram negativas ou Gram positivas fracas quando as células estão envelhecidas. As células desse gênero apresentam-se em pares ou em cadeias. São aeróbios estritos e oxidam a molécula do etanol a ácido acético.
O nome Gluconobacter vem da característica do gênero de oxidar a glicose em ácido glucorônico. A espécie representante deste gênero é o Gluconobacter oxydans, encontrado em alimentos, vegetais, frutas, fermento de padaria, cerveja, vinho, cidra e vinagre.
Fatores de crescimento: As espécies do gênero Acetobacter tem algumas exigências nutricionais, tais como algumas vitaminas do complexo B, a saber, tiamina, ácido pantotênico e ácido nicotínico. Além disso, algumas espécies demonstram a necessidade do ácido p-aminobenzóico. As necessidades vitamínicas podem ser supridas com o uso de água de maceração do milho, extrato de leveduras, lisado de leveduras, malte ou extrato de malte.
Algumas espécies necessitam que sejam colocados no meio de cultura aminoácidos como fontes de nitrogênio. Por outro lado, Acetobacter oxydans, Acetobacter rancens e Acetobacter melanogenus não necessitam de valina, cistina, histidina, alanina e isoleucina.
Mecanismo de fermentação
Bioquimicamente, os Acetobacter realizam processos catabólicos e anabólicos por aerobiose e anaerobiose. É de interesse industrial o catabolismo oxidante aeróbio de álcoois e açúcares, realizado por microrganismos, usados na produção de ácido acético ou de vinagre.
O mecanismo de produção do ácido acético ocorre em duas etapas:
1º) É formado o acetaldeído por oxidação;
2º) O acetaldeído é convertido a ácido acético: (75% do acetaldeído é convertido a ácido acético e os 25% restantes a etanol)
Produção do Vinagre:
Para a produção do vinagre, são utilizados membros do gênero Acetobacter. A bactéria Acetobacter aceti utiliza o etanol, produzindo ácido acético, por isso é de grande interesse tecnológico. Outras espécies como o Acetobacter suboxydans, Acetobacter melanogenus, Acetobacter xylinum e Acetobacter rancens comportam-se de modo semelhante, desde que sejam adicionados ao meio, inicialmente em pequenas quantidades de glicose, frutose, glicerol ou manitol.
Fermentação Butírica
A fermentação butírica é a reação química realizada por bactérias anaeróbias, através da qual se forma o ácido butírico. A fermentação butírica trata-se da conversão de carboidratos em ácido butírico por ação de bactérias da espécie Clostridium butyricum na ausência de oxigênio. Este processo foi descoberto por Louis Pasteur em 1861 e produz, a partir da lactose ou do ácido láctico, ácido butírico e gás. É característica das bactérias do gênero Clostridium e se caracteriza pelo surgimento de odores pútridos e desagradáveis.
As bactérias produtoras de ácido butírico são encontradas no solo, em plantas, no esterco e, por isso, são facilmente encontradas no leite. A silagem estocada em más condições é uma fonte importante de esporos. As principais espécies são Clostridium tyrobutyricume e Clostridium butyricum, anaeróbias, formadoras de esporos com uma temperatura ótima de crescimento de 37°C (Figura 22).
Esses microrganismos não apresentam crescimento ideal no leite pois este contém O2, porém, se desenvolvem no queijo onde as condições anaeróbias prevalecem. As propriedades do queijo como substrato microbiano transformam-se durante os primeiros dias da fermentação láctica. No início, o carboidrato (lactose) é o substrato principal e com o decorrer da fermentação o lactato transforma-se no principal elemento capaz de sustentar o crescimento microbiano. A lactose é fermentada a ácido láctico, o qual é neutralizado pelo cálcio e outros minerais, formando lactato de cálcio. Então, a fermentação butírica precoce (“estufamento precoce”) é devida à transformação da lactose por Clostridium butyricum, enquanto que a fermentação tardia (“estufamento tardio”) é conseqüência da degradação do lactato causado por Clostridium butyricum ou Clostridium tyrobutyricum (que só fermenta lactato). Essas fermentações produzem grandes quantidades de CO2, hidrogênio e ácido butírico. O queijo adquire uma textura rachada e um gosto rancoso e adocicado de ácido butírico.
As formas esporuladas resistem à pasteurização e podem causar grandes danos na produção de queijos. A adição de nitrato de potássio no leite destinado a produção de queijo é um método eficaz de controle. Contudo, o uso desse conservante tem sido combatido em vários países pelo presumido risco de formação de substâncias carcinogênicas. Também, o sal de cozinha (cloreto de sódio) possui um importante efeito inibitório sobre as bactérias butíricas, mas é importante que o mesmo seja utilizado precocemente, na formação do coágulo. Os esporos das bactérias butíricas podem ser eliminados por centrifugação (bactocentrifugação) e microfiltração.
Conclusões
Os diversos tipos de reações de fermentação apresentam um inestimável valor para o ser humano, pois, pode-se depreender que o subproduto das mesmas fornece inúmeras vantagens para as indústrias alimentícia, de bebidas e farmacêutica, o que direta e/ou indiretamente resultam em benefício para a sociedade de um modo geral (Figura 23).
Ainda para finalizar, vale a pena referir sobre os processos de fermentação que podem ocorrer no organismo do ser humano, especificamente no trato digestivo, em particular no intestino grosso (Figuras 24 e 25).
Quando determinados substratos não são digeridos pelas enzimas que deveriam estar presentes no intestino delgado (por exemplo lactase x lactose) ou mesmo alguns oligossacarídeos que fazem parte da dieta e que normalmente não são absorvidos, sofrem um processo de fermentação pela microflora bacteriana residente do intestino grosso, podendo acarretar sintomas indesejáveis (Figuras 26 e 27).