Síndrome do Intestino Irritável: reações atípicas de alergia alimentar não associada com IgE
Prof Dr Ulysses Fagundes Neto
A revista Gastroenterology em seu número de julho de 2019, publicou este pioneiro e muito estimulante artigo: Many patients with irritable bowel syndrome have atypical food allergies not associated with immunoglobulin E, de autoria Annette Fritscher-Ravens e colaboradores, que a seguir passo a resumir.
INTRODUÇÃO
A Síndrome do Intestino Irritável (SII) trata-se de um transtorno comum e universal com grande impacto sócio-econômico. Os alimentos, desde longa data, têm sido suspeitados como a causa dos sintomas da SII, mas a evidência tem permanecido escassa a despeito dos relatos do surgimento dos sintomas, após as refeições. A exclusão da dieta dos alimentos conhecidos como os FODMAPs pode induzir ao alívio dos sintomas em alguns pacientes, porém, não parece ser superior às dietas padronizadas para a SII, baseadas em um estilo de vida balanceado, tais como: refeições regulares, evitar café, condimentos e alimentos gordurosos. Deve-se também considerar que a exclusão de alguns alimentos específicos, tais como o trigo ou o glúten, têm efetivamente resolvido o problema em alguns pacientes com a SII. Entretanto, investigações dietéticas não confirmaram de forma confiável, o papel patogênico dos alimentos, nem tão pouco permitiram discernir as alterações celulares ou fisiológicas causadoras dos sintomas. Consequentemente, a demonstração objetiva bem como a mensuração da resposta patológica do trato gastrointestinal a determinados alimentos específicos é altamente desejável para permitir uma aferição válida a respeito destes potenciais nutrientes alergênicos nos pacientes com SII. Além disso, também poderia levar a compreender a fisiopatologia de base e para identificar o alimento agressor, o que possibilitaria a escolha de uma dieta de exclusão baseada em evidência.
OBJETIVOS
No presente estudo, foi utilizado o endomicroscópio confocal a laser (ECL) como padrão para comprovar a reação aos alimentos em um grupo de pacientes portadores da SII. Além disso, procedimentos histológicos e moleculares foram utilizados para análises mais detalhadas dos mecanismos básicos da reação gastrointestinal aos alimentos neste transtorno controvertido e supostamente “funcional”.
MÉTODOS
Participantes
Pacientes que admitiam que seus sintomas estavam relacionados a ingestão alimentar e que preenchiam os critérios de Roma III para SII, e que apresentavam sintomas de moderados a intensos por ao menos um ano foram incluídos no estudo (Figura A).
O presente estudo teve por foco a intervenção dietética randomizada duplo-cego nos pacientes com SII na avaliação da reação fisiopatológica, celular, imunológica e bioquímica, naqueles pacientes que se mostraram positivos aos antígenos alimentares (ECL positivos) versus nos pacientes (ECL negativos) ou controles sadios (CS). O estudo se baseou hipoteticamente no princípio de que os pacientes relatavam sintomas diários da SII, que apresentavam alívio deles com a restrição de certos alimentos, e que estes alimentos quando ingeridos diariamente e regularmente seriam responsáveis pelos seus sintomas. Essas reações aos alimentos poderiam causar alterações fisiopatológicas na mucosa intestinal, possivelmente devido a uma alergia atípica.
Endomicroscopia e provocações alimentares.
Os seguintes eventos do ECL foram quantificados antes e após o teste de provocação, a saber:
- Densidade dos linfócitos intraepiteliais (LIE);
- Rupturas epiteliais que provocaram vazamentos de fluoresceína para o interior do lúmen intestinal;
- Presença de sinal fluorescente entre os enterócitos;
- Alargamento dos espaços intervilositários devido ao vazamento através da mucosa, com mudança de cor na imagem de negra para branca.
Os pacientes receberam provocações alimentares sequenciais com 20ml de uma solução padronizada dos seguintes alimentos, a saber: trigo, leite, soja, levedura ou clara de ovo e uma substância controle (água com policilane).
Endoscopia para a realização de biópsias duodenais e coleta de fluido duodenal
A endoscopia digestiva alta (EDA) foi realizada duas semanas antes das biópsias basais para a ECL. Um segundo lote de biópsias e de coleta de fluido foi realizada imediatamente após todas as exposições aos alimentos nos pacientes ECL negativos e CS, e após uma reação positiva nos pacientes ECL positivos, aproximadamente 10 minutos após a última provocação com o antígeno alimentar.
RESULTADOS
Foram incluídos no estudo 108 pacientes portadores da SII, 52% com diarreia (SII-D), 42% com sintomas mistos (SII-SM), 14% com constipação (SII-C); 76 pacientes revelaram-se ECL positivos e 32 pacientes foram ECL negativos. Reações tipicamente positivas estão ilustrados na Figura 1.
As características dos 76 pacientes ECL positivos, suas reações aos diferentes antígenos alimentares e os 32 pacientes ECL negativos e os CS, estão apresentadas na Tabela 1.
Pode se observar que a maioria dos pacientes ECL positivos reagiram com o trigo (n=46, 60.5%) e os remanescentes reagiram com levedura (n=15, 20%), leite (n=7, 9.2%), soja (n=5, 6.6%) e clara do ovo (n=3, 4%). Deste grupo de ECL positivos, 9 pacientes reagiram com dois dos antígenos testados.
História Clínica dos Pacientes
A histórica clínica dos pacientes e/ou de seus parentes de primeiro grau, mostrou uma elevada prevalência de transtornos atópicos nos pacientes ECL positivos, especialmente relacionados a alergenos inaláveis, não importando a quais antígenos alimentares eles reagiram (68.9% versus 38.3% versus 15.4% ECL positivos versus ECL negativos e CS respectivamente) (Figura 2).
Achados ECL
Os achados basais ECL antes da administração de cada componente alimentar foram similares a despeito da localização no duodeno, mais distal ou proximal, a qual alimento foi aplicado ou se acaso tenha sido a primeira ou a última provocação alimentar, sempre quando a reação ao alimento foi negativa. Entretanto, caso a reação a qualquer dos componentes alimentares tenha sido positiva, aplicações posteriores dos alimentos foram suspensas, porque tal reação ocorreria e seria visualizada através do duodeno, invalidando testes posteriores pela ausência de um estado basal. O ECL foi retomado em outro momento se outro alergeno fosse suspeitado.
Histologia
De uma maneira geral, a morfologia duodenal mostrou-se normal após a ECL e similar aos resultados prévios pré ECL, porém, os LIE mostraram-se significativamente mais elevados no ECL positivos (média 25.2 +/- 8.4), do que nos ECL negativos (18.7 +/-11.8 p=.03); CS (média 14.4 +/-3.4; p=.001). Os LIE foram encontrados no topo das vilosidades bem como nos terços superiores laterais das mesmas, e não houve um aparente óbvio gradiente entre esses locais (Suplementos 1 e 2).
Imuno-histoquímica e PCR quantitativo
Em todas as amostras de biópsias, a expressão claudin-2 nos enterócitos aumentou ao longo do eixo cripta-vilosidade e mostrou-se mais intenso no terço superior da vilosidade (Figura 3A-4A), mas não houve diferença significativa entre as amostras ECL positivos e CS. Embora os níveis de transcrição claudin-2 antes da provocação fossem similares no ECL positivos e CS, eles mostraram-se significativamente diferentes nas amostras ECL positivos após a provocação. Em contraste, a expressão da proteína ocludin mostrou-se reduzida nos ECL positivos versus CS (Figura 4B), foi mais intensa nas criptas, e diminuiu de forma uniforme em direção ao topo das vilosidades (Figuras 3B-C e 4C). No topo das vilosidades somente a proteína ocludin mostrou-se significativamente menos intensa nos pacientes ECL comparados com os CS (Figura 4C), enquanto a transcrição total da ocludin permaneceu inalterada imediatamente após a provocação alimentar. Não houve diferenças significativas entre os pacientes que apresentaram reação ao trigo versus os outros antígenos alimentares.
Eosinófilos, Proteína Catiônica Eosinofílica (PCE) e Triptase
Após a provocação PCE do fluido duodenal mostrou-se significativamente mais alta nos pacientes ECL comparados com CS, mas não com os pacientes ECL negativos (Figura 5).
Antes da provocação os eosinófilos nos tecidos e a triptase no fluido duodenal não mostraram diferenças entre os pacientes ECL positivos ou ECL negativos ou CS, e eles permaneceram inalterados após a provocação. Entretanto, um maior número de eosinófilos degranulados foram observados nos pacientes ECL positivos, ECL negativos e CS (Figura 6).
CONCLUSÃO
Os presentes achados são altamente reminiscentes de uma reação alérgica aos alimentos, a despeito da falta de positividade dos testes IgE específicos e cutâneos aos alergenos incriminados. Neste sentido, eles são clinicamente reminiscentes de sensibilidades alimentares da esofagite eosinofílica ou da hiperreatividade das vias áreas nos pacientes com asma e eosinofilia na saliva, nos quais as respostas de hipersensibilidade são retardadas. Além disso, nestes pacientes o influxo e a ativação dos eosinófilos da mucosa estão associados com uma história pessoal e familiar de atopia. É interessante notar que um mecanismo similar tem sido postulado para alguns pacientes com colite ulcerativa e colite inespecífica, os quais apresentam intolerância alimentar. Nós levantamos a hipótese de que nossos pacientes com SII, apresentam uma forma de alergia alimentar atípica não mediada por IgE envolvendo um aumento da ativação eosinofílica e dos linfócitos intra-epiteliais. Poder-se-ia inquirir porque o trigo mostrou-se o alergeno predominante nestes pacientes. Uma possível explicação poderia ser que o trigo não somente contém uma grande variedade de glúten e especialmente de alergenos proteicos não relacionados ao glúten, mas também os inibidores da tripsina amilase não glúten que ativam os receptores 4toll-like nas células mieloides da mucosa intestinal. Na análise da ECL nos pacientes com SII, nós encontramos que mais de 50% dos pacientes podem apresentar alergia alimentar não clássica com ruptura imediata da barreira intestinal após a exposição com antígenos alimentares. Fragmentos de biópsia duodenal dos pacientes que apresentam respostas aos componentes alimentares durante a ECL tem aumentos imediatos na expressão da claudin-2 e diminuição da ocludin. Os pacientes ECL positivos também apresentam aumento da degranulação dos eosinófilos, indicando uma alergia alimentar atípica caracterizada por ativação eosinofílica.
Meus comentários
A SII trata-se de um transtorno gastrointestinal funcional que admite múltiplas etiologias, incluindo reações adversas relacionadas aos alimentos. Vários estudos têm investigado o papel das alergias alimentares nos pacientes com SII, entretanto, os mecanismos íntimos destas reações adversas não foram até o presente momento totalmente elucidados. Está bem estabelecido que alguns alimentos podem deflagrar uma reação imunológica anômala e acarretar um aumento da permeabilidade intestinal nos pacientes com SII. Na realidade vários estudos têm demonstrado que em mais da metade dos pacientes com SII, seus sintomas se agravam após o consumo de alguns alimentos específicos, tais como trigo e seus derivados, leite de vaca, molho de soja e ovos. Além disso, outros estudos também demostraram que a eliminação da dieta dos alimentos contendo os atualmente bem conhecidos sob a designação de FODMAPs, são eficazes para reduzir os sintomas da SII. O presente estudo, no entanto, mostrou-se pioneiro e extremamente importante porque nos fornece suporte para a identificação de manifestações adversas à determinados alimentos com evidente manifestação de alergia, não envolvendo os mecanismos clássicos conhecidos, ou seja, de hipersensibilidade retardada ou mesmo de hipersensibilidade imediata mediada por IgE. Trata-se, portanto, de um grande avanço para um melhor entendimento das relações entre os fatores dietéticos e as repostas imunológicas inatas e adaptativas, e suas respectivas interações com a mucosa intestinal que ocorrem na SII. Consequentemente, a compreensão das alterações estruturais ocorridas na mucosa do intestino delgado fornece a possibilidade de se proporcionar mais uma alternativa terapêutica, que até o presente momento não tem se mostrado completamente eficaz.
Referência Bibliográfica
- Annette Fritscher-Ravens e cols. Gastroenterology 2019; 157:109-118.
- Queneherve L e cols. Gastrointest Endosc 2019; 89:626-36.
- Martinez C e cols. Gut 2013; 62:1160-68.
- Halmos EP e cols. Gastroenterology 2014; 146:67-75.