Transtornos Alimentares na Infância
Prof Dr Ulysses Fagundes Neto
Introdução
A alimentação é um processo complexo que requer a interação do sistema nervoso central e periférico, mecanismos oro-faríngeanos, sistema cardiopulmonar, e o trato gastrointestinal, com sustentação das estruturas crânio faciais e do sistema musculo esquelético. Essa interação coordenada requer a aquisição de habilidades apropriadas para os diferentes estágios fisiológicos de desenvolvimento da criança. Nos anos mais precoces a alimentação ocorre no contexto de uma íntima correlação com o cuidador. A perturbação em quaisquer desses sistemas coloca a criança em risco de um transtorno alimentar e as respectivas complicações associadas. Em geral, mais de um desses sistemas podem apresentar uma ruptura, o que irá contribuir para o desenvolvimento e a persistência dos transtornos alimentares. Consequentemente, a efetiva avaliação e o tratamento do transtorno alimentar requerem um envolvimento multidisciplinar (Figura 1).
É importante assinalar que os transtornos alimentares podem provocar um grande impacto negativo nas funções físicas, sociais, emocionais e cognitivas da criança e, também, provocar um elevado estresse no cuidador. Um sistema de classificação contendo a descrição dos efeitos dos transtornos alimentares sobre a função, possibilitaria aos clínicos e pesquisadores uma melhor caracterização das necessidades das heterogenias populações de pacientes, facilitaria a inclusão de todas as disciplinas relevantes de tratamento, e, permitiria que o time de profissionais da saúde venha a utilizar o uso comum de terminologia precisa para atender às necessidades de uma melhoria na prática clínica e na pesquisa.
Definição dos Transtornos Alimentares
O transtorno alimentar é definido como uma ingestão oral prejudicada, que é inapropriada para uma determinada idade e está associada com uma disfunção clínica, nutricional, habilidade alimentar e ou psicossocial.
Na tabela 1 abaixo, estão listados os critérios diagnósticos propostos dos transtornos alimentares, os quais podem ser classificados em agudos (menores de três meses de duração) e crônicos (igual ou maior a três meses de duração).
Tabela 1 – Critérios diagnósticos propostos para os Transtornos Alimentares na infância
- Anormalidade na ingestão oral de nutrientes, inapropriada para a idade, com duração de pelo menos duas semanas e associada com 1 ou mais dos seguintes fatores:
- Disfunção clínica, a saber:
- Comprometimento cardiorrespiratório durante a alimentação oral.
- Aspiração ou pneumonite aspirativa recorrente.
- Anormalidade nutricional, a saber:
- Desnutrição.
- Deficiência nutricional específica ou ingestão significantemente restringida de um ou mais nutrientes resultantes de uma diversidade dietética diminuída.
- Dependência exclusiva da alimentação enteral ou de suplementos orais para manter o estado nutricional e ou de hidratação.
- Habilidade prejudicada para se alimentar, a saber:
- Necessidade de modificação da textura de líquidos ou sólidos.
- Uso de modificação da posição da criança ou do equipamento para a alimentação.
- Uso de estratégias modificadas para a alimentação.
- Disfunção psicossocial durante o processo de alimentação da criança, a saber:
- Comportamentos de recusa alimentar ativa ou passiva.
- Manejo inapropriado do cuidador.
- Ruptura do funcionamento social.
- Ruptura da relação cuidador/criança associada ao processo de alimentação.
- Ausência da consistência dos processos cognitivos nos transtornos alimentares e padrão de ingestão oral que não estão relacionados com escassez de alimento ou que contrariam as normas culturais da família.
O padrão de referência proposto para a ingestão oral está relacionado com a alimentação apropriada para uma determinada idade: a progressiva aquisição das habilidades alimentares possibilitando a progressão desde a amamentação (natural ou artificial) até a independência em se alimentar, passa por uma variedade de alimentos apropriados para as respectivas idades. As crianças que apresentam um atraso no desenvolvimento poderão ter habilidades alimentares apropriadas para o seu nível de desenvolvimento, porém, não para a sua respectiva idade; consequentemente essas crianças receberão o diagnóstico de serem portadoras de um transtorno alimentar.
Na definição proposta, a ingestão oral prejudicada se refere a uma falta de habilidade para consumir de forma suficiente alimentos sólidos e líquidos para alcançar os requisitos nutricionais e hídricos. A definição exclui a falta de habilidade para a ingestão de medicamentos ou alimentos atípicos não palatáveis. Para eliminar problemas alimentares transitórios resultantes de enfermidades agudas, a ingestão oral prejudicada deve se fazer presente por pelo menos duas semanas.
Para se distinguir entre transtorno alimentar e distúrbios alimentares (por exemplo, anorexia nervosa), o transtorno alimentar deve ser diagnosticado somente na ausência de distúrbios da imagem corporal. Os transtornos alimentares estão baseados em quatro domínios importantes: clínico, nutricional, habilidades alimentares e psicossocial. Em virtude da interação entre esses 4 domínios, quando um deles está prejudicado pode levar a disfunção de quaisquer dos outros três, e isto resulta em transtorno alimentar, o que será abordado a seguir (Figura 2).
Fatores Clínicos
A deficiência da função/estrutura do trato gastrointestinal e dos sistemas cardiorrespiratório e neurológico, estão frequentemente associados com disfagia que resulta na disfunção de um ou mais domínios alimentares. Estes prejuízos relacionados às condições clínicas dão lugar a disfunção por meio de diversos mecanismos.
A disfunção do trato gastrointestinal superior está associada a transtorno alimentar surgindo primariamente por uma anomalia do trato gastrointestinal ou enfermidade, ou secundariamente, devido a uma doença respiratória ou das vias aéreas. Anomalias orofaríngeas e laríngeas podem prejudicar os mecanismos da alimentação normal. Doenças inflamatórias do trato gastrointestinal superior também podem prejudicar a alimentação normal. Muito embora não existam suficientes evidências documentadas para apoiar uma forte associação entre refluxo gastroesofágico e transtorno alimentar, o elo entre transtorno alimentar e EEo está bem estabelecido. Enfermidades do trato gastrointestinal funcionais ou da motilidade também podem prejudicar a alimentação, incluindo mesmo aquelas crianças com atresia esofágica reconstruída, pós fundoplicatura e intolerância ao volume dos alimentos, independentemente de gastroparesia, naqueles pacientes com enfermidades clínicas complexas.
Doenças das vias áreas e dos pulmões são os outros componentes das enfermidades respiratórias que também podem resultar em transtornos alimentares, e, particularmente nos lactentes com taquipneia crônica, quando a coordenação de sugar-deglutir-respirar se encontra particularmente afetada. Doença pulmonar crônica da prematuridade geralmente causa taquipneia e dispneia que afetam a deglutição e a aquisição da habilidade alimentar. A aspiração pulmonar resultante de um transtorno alimentar pode se manifestar como infecções do trato respiratório inferior (pneumonia), mas esta aspiração é mais comumente identificada por meio da fluoroscopia, a qual se baseia em sinais sutis respiratórios e/ou outras manifestações clínicas, como por exemplo, recusa alimentar. Crianças que sofrem de doença cardíaca congênita podem necessitar hospitalização prolongada com cuidados de intervenção intensivos, que podem retardar e dificultar a aquisição das habilidades alimentares. Cirurgia cardíaca pode resultar em lesão recorrente do nervo laríngeo, acarretando paralisia da prega vocal esquerda e diminuição da proteção das vias áreas. Hipóxia crônica e possível lesão vagal, podem desempenhar um papel importante na intolerância alimentar e vômitos nessas crianças.
Crianças com comprometimentos neurológicos apresentam um elevado risco de transtorno alimentar, particularmente à medida que elas crescem e alcançam situações aonde as necessidades nutricionais excedem suas habilidades alimentares. Em geral, crianças que apresentam retardos motores mais graves e cognitivos, tem maiores dificuldades alimentares. Disfagia neurogênica é comum durante a infância, mas, pode estar presente em idades mais avançadas secundárias a paralisia cerebral, que pode acarretar morbidade e mortalidade devido a aspiração crônica.
Transtornos do desenvolvimento neurológico, especificamente aqueles do espectro autista, também estão associados com transtornos alimentares. Finalmente, algumas crianças que consomem quantidade calórica inadequada para o crescimento normal, podem apresentar um transtorno do apetite, sinalizando mecanismos causadores de transtornos alimentares.
Fatores Nutricionais
Inúmeras crianças que sofrem de transtorno alimentar passam a ter uma restrição na qualidade, quantidade e/ou variedade no consumo de bebidas e alimentos, o que as coloca sob o risco de desnutrição, deficiência de micronutrientes e desidratação. Desnutrição é definida como uma ingestão insuficiente de nutrientes para alcançar os requerimentos nutricionais, resultando em uma deficiência cumulativa de energia, proteína ou micronutrientes, o que irá impactar de forma negativa no crescimento e no desenvolvimento. Desnutrição afeta entre 25 a 50% das crianças que apresentam transtorno alimentar e é mais prevalente entre aquelas que sofrem de enfermidades crônicas ou do desenvolvimento do sistema nervoso.
A restrição da diversidade dietética que é comum nos transtornos alimentares pode apresentar outras consequências nutricionais adversas. A exclusão de grupos inteiros de alimentos, tais como frutas e vegetais, pode resultar em deficiência de micronutrientes a despeito da ingestão adequada de macronutrientes. Crianças que ingerem quantidade excessivas de alimentos específicos, bebidas ou suplementos dietéticos, podem apresentar um excesso de micronutrientes, mas raramente toxicidade. A ingestão excessiva de calorias, especialmente nas condições em que os requerimentos energéticos são baixos, pode resultar em obesidade.
Fatores relacionados com a capacidade de se alimentar
Experiências de incapacidade de alimentação devido a enfermidades, lesões ou desenvolvimento retardado, podem levar a um prejuízo na capacidade da alimentação. Retardo no desenvolvimento do sistema nervoso, inibindo a alimentação, pode se tornar evidente em qualquer momento nos primeiros anos de vida, durante períodos de mudanças na anatomia orofaríngea e na coordenação neuromuscular, mudanças de texturas e transições dos utensílios para se alimentar e/ou beber. Prejuízos específicos no funcionamento sensor, motor, oral e faríngeo, podem também inibir a capacidade de se alimentar. Além disso, experiências orais alteradas devido a lesões físicas, deficiências da função neurológica, função ou estrutura oral anormal, e/ou experiências alimentares adversas ou limitadas, também podem causar prejuízo na capacidade de se alimentar.
O prejuízo da função sensorial oral inibe e/ou limita a aceitação e a tolerância de líquidos e das texturas dos alimentos esperados para uma determinada idade; este prejuízo pode estar associado com características específicas dos líquidos e das texturas dos alimentos, tais como, o sabor, a temperatura, o tamanho do bolus, viscosidade, textura ou aparência. A hiposensibilidade é geralmente caracterizada pela falta de percepção do alimento no interior da boca, a limitação da formação do bolus, a perda do alimento pela boca, aumento do tamanho do bolus e engasgos ou recusa de líquidos e texturas dos alimentos que não fornecem adequado estímulo sensorial. Estas crianças, caracteristicamente buscam um aumento do tamanho do bolus ou de sabores exagerados, temperaturas e texturas. Hipersensibilidade está geralmente caracterizada por engasgos com texturas especificas ou tamanho do bolus, excessiva mastigação e variedade de ingestão. Estas crianças buscam caracteristicamente sabores amenos, finamente granulados, bolus pequenos e alimentos na temperatura ambiente.
O prejuízo da função oral motora limita o controle do bolus, manipulação e/ou o trânsito de líquidos ou sólidos; este fator pode ser caracterizado por ingestão ineficiente, alimentação confusa, baixo controle de líquidos e alimentos, formação e propulsão do bolus de forma lenta ou ineficaz, engasgos durante a formação do bolus, e a existência de resíduos pós deglutição.
Embora o clínico possa avaliar as fases orais visualmente, a avaliação das estruturas faringianas e suas funções requerem avaliação instrumental, utilizando a deglutição de bário modificado ou a avaliação da deglutição com o endoscópio de fibra ótica. Um prejuízo na sensação faríngea, inibe a proteção aérea e eficaz da deglutição; ela está geralmente associada com uma deglutição retardada e incoordenada durante o trânsito faríngeo, pouca percepção da localização do bolus, presença de resíduo faringiano após a deglutição e aspiração silenciosa. Uma característica clínica de deficiência sensorial, pode incluir deglutição audível e ausência na tentativa de eliminar o resíduo após a deglutição.
O prejuízo da função motora faríngea inibe os movimentos faríngeos. Ele pode ser evidenciado pela redução da força da coordenação dos constritores faríngeos, elevação laríngea e fechamento da prega vocal. Os sintomas podem incluir múltiplos esforços para deglutir o bolus, inabilidade para eliminar o resíduo faríngeo e ineficiente proteção das vias áreas.
Disfunção baseada na capacidade de se alimentar
A capacidade de se alimentar na infância, para ser totalmente funcional, necessita ser segura, apropriada para a idade e eficaz. A disfunção em quaisquer destas áreas constitui uma deficiência da alimentação.
Alimentação oral não segura pode apresentar sufocação, aspiração e sinais cardiorrespiratórios adversos (apneia e bradicardia) durante as alimentações orais ou outros eventos adversos no momento da refeição (engasgos, vômitos, fadiga, recusa alimentar).
Capacidade retardada para se alimentar pode estar presente quando a criança é incapaz de consumir líquidos e alimentos com textura apropriados para a idade. A criança pode requerer uma modificação da comida ou do líquido, desde a sua forma original, como por exemplo, amassando os sólidos até a formação de um purê. Essas crianças podem apresentar deficiência no uso dos utensílios de alimentação ou mesmo em se auto alimentar.
Alimentação oral ineficiente pode ser representada por uma duração prolongada da comida na cavidade bucal ou ingestão oral inadequada.
Fatores Psicossociais
Fatores íntimos relacionados à criança, o cuidador e o ambiente da alimentação, podem afetar de forma adversa o momento da refeição e definitivamente contribuir para a ocorrência e/ou a perpetuação do transtorno alimentar.
Prejuízos psicossociais
Fatores psicossociais da criança e/ou do cuidador podem contribuir para a disfunção alimentar.
Fatores do desenvolvimento resultando em retardo das habilidades motoras, linguagem, socialização e do conhecimento podem contribuir para o surgimento do transtorno alimentar.
Problemas mentais e de saúde comportamental da criança, do cuidador, ou em ambos podem influir de forma adversa o comportamento alimentar.
Influências sociais incluindo as interações criança-cuidador e expectativas culturais no momento do contexto da refeição podem impactar o comportamento da criança a respeito da alimentação.
Fatores ambientais podem contribuir para o desenvolvimento de transtornos alimentares. Durante as refeições um meio ambiente de distração, como por exemplo, o uso de televisão ou outros aparelhos eletrônicos, ou o ato de recorrer a artifícios tais como, alimentar a criança somente quando ela estiver sonolenta ou mesmo adormecida, podem ser um fator inadvertido para causar comportamento inadequado.
Disfunção psicossocial
Transtorno alimentar pode ocorrer como resultado dos prejuízos acima descritos e geralmente se manifestam das seguintes formas, a saber: (As Figuras 3-4-5-6-7 abaixo ilustram os diferentes tipos de Transtornos Alimentares em decorrência de fatores psicossociais)
Aversões aprendidas durante a refeição que resultam quando uma criança sofre repetidamente desconfortos físicos ou emocionais durante as refeições.
Estresse ou angústia da criança e/ou cuidador são expressas como emoções negativas decorrente das refeições.
Comportamentos disruptivos, tais como empurrar o prato de comida para longe (recusa), agressividade contra o cuidador, escapar do ambiente da refeição ou mesmo recusar a se auto alimentar.
Hiperexigência na seleção da comida e a recusa em provar novos alimentos a despeito da criança ter habilidade para comer uma dieta mais diversa.
Estratégias inapropriadas utilizadas pelo cuidador com o intuito de melhorar o estado nutricional da criança.
Conclusões
A despeito de que nem todas as crianças que sofrem de transtornos alimentares apresentem deficiências em todos os 4 domínios anteriormente referidos, a avaliação inicial de cada um destes domínios é fortemente recomendada. Esta conduta deve ser realizada porque os mesmos sinais e sintomas apresentados podem render recomendações complementares domínio específicas, necessárias para o sucesso do tratamento, em promover a melhor forma da função desejada.
Por meio da utilização de uma terminologia consistente, detalhada e interdisciplinar que consiga englobar ambos, o prejuízo fisiológico e a função, essas definições têm o potencial para facilitar a colaboração interdisciplinar, promover um currículo educacional para o treinamento dos profissionais da saúde, e permitir a comparação dos desfechos entre os estudos (pesquisas) e os programas clínicos. Esta proposta, por sua vez, pode levar ao reconhecimento do diagnóstico específico dos subtipos de transtornos alimentares, proporcionando assim implicações no possível êxito terapêutico e no respectivo prognóstico.
Referências Bibliográficas
- Godoy PS & cols. -JPGN 2019;68:124-29
- Jadcherla S – Am J Clin Nutr 2016;103:622-28
- Becker P & cols. – Nutr Clin Pract 2015;30:147-61
- Chandran JL & cols. – Int J Eat Disord 2015;48:1176-9